Para o analista Baltazar Fael, do CIP, a decisão da Justiça norte-americana sobre Jean Boustani não é "uma derrota para o povo", porque o verdadeiro culpado das dívidas é o próprio Estado moçambicano.
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Considerado o cérebro do escândalo financeiro que resultou nas dívidas ocultas moçambicanas, Jean Boustani foi ilibado esta segunda-feira (02.12) pelo tribunal norte-americano onde estava a ser julgado.
Para o analista moçambicano, Baltazar Fael, do Centro de Integridade Pública (CIP) de Moçambique, esta decisão do Tribunal Federal de Brooklyn, em Nova Iorque, "não pode ser considerada uma derrota para o povo moçambicano".
Em entrevista à DW África, Fael considera que o culpado neste momento é o Estado moçambicano que "se deixou enganar, porque não tomou as devidas precauções para evitar este escândalo".
Dívidas ocultas: "Estado moçambicano é o culpado"
DW África: Que avaliação faz da decisão do Tribunal Federal de Brooklyn?
Baltazar Fael (BF): A sentença que foi proferida e que acabou inocentando Jean Boustani está a parecer, na minha ótica, uma derrota, em termos latos, para o próprio Governo de Moçambique. Isto não deve ser visto como uma tragédia para aquilo que sempre foi a luta da sociedade civil e de outros segmentos da sociedade, na medida em que o júri norte-americano, no fundo, quer dizer que o culpado por aquilo que aconteceu, de facto, é o próprio Governo moçambicano, que não tomou as medidas necessárias para que Jean Boustani não fizesse aquilo que fez. A partir daqui, o que vai surgir é: afinal de contas, que medidas de precaução é que o Governo tomou para que Boustani não fizesse aquilo que fez?
DW África: Daqui para a frente, o que se espera?
BF: O que se espera é, cada vez mais, uma ação enérgica por parte da nossa Procuradoria-Geral da República, no sentido de perceber que contornos levaram a que não se seguisse este dever de cuidado por parte do Estado moçambicano, para evitar todas as possibilidades de ser enganado por esses indivíduos, inclusive o próprio Jean Boustani, que foi inocentado.
DW África: Quem serão, então, os culpados se o considerado cérebro deste esquema financeiro foi inocentado?
BF: Não há dúvidas que os culpados aqui são aqueles que se deixaram enganar: o Estado moçambicano, que não tomou as devidas precauções para evitar que Jean Boustani nos conseguisse enganar. Até porque o próprio Estado, neste momento, está a começar a pagar esta dívida.
Explica-me as dívidas ocultas de Moçambique
DW África: Acha que os Estados Unidos estão em condições, neste preciso momento, de acusar o Estado moçambicano?
BF: Penso que os Estados Unidos têm toda a matéria neste sentido. Se há uma decisão judicial nos Estados Unidos da América, e nós sabemos que a legislação americana tem tentáculos e chega a quase todos os cantos do mundo, os norte-americanos estão numa posição de dizer que, a partir de agora, o Estado moçambicano deve pagar esta dívida. Penso que o ónus passa claramente para o Estado moçambicano.
DW África: Na sua opinião, esta "novela" está fechada ou vai-se abrir um novo capítulo?
BF: Penso que isto não está fechado para as autoridades norte-americanas. E nem o processo que está a correr a nível do Tribunal Administrativo, nem o processo que está a correr na Procuradoria-Geral da República estão encerrados.
DW África: Então, os protagonistas do próximo capítulo são os co-conspiradores que foram citados no julgamento?
BF: Claramente. Não há dúvida absolutamente nenhuma. E eu desafio outros titulares de cargos públicos e políticos que foram acusados de serem conspiradores a continuarem a ter a mesma vida que têm: a viajar para o estrangeiro, a fazer tratamentos médicos em outros países… Esta liberdade de circulação... Nós haveríamos de verificar que muitos deles, a partir dos dados que foram lançados por este julgamento, terão bastante receio em continuar a ter o mesmo nível de liberdade para ir a qualquer parte do mundo.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)