O segundo dia da audição do ex-diretor do SISE foi marcado, novamente, pela sua recusa em responder a algumas questões. O réu preferiu atribuir responsabilidades aos ex-ministros Filipe Nyusi e Manuel Chang.
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O réu Gregório Leão remeteu, esta terça-feira (28.09), alguns detalhes da criação da EMATUM (Empresa Moçambicana de Atum) e da ProIndicus ao antigo ministro da Defesa Filipe Nyusi, atual Presidente da República e, à data dos factos, chefe de Comando Conjunto.
Gregório Leão disse não estar igualmente em condições de responder sobre as garantias do Estado na criação destas empresas, remetendo este assunto ao ex-ministro das Finanças, Manuel Chang, e ao co-réu António Carlos do Rosário.
O antigo diretor do SISE confirmou, no entanto, ter solicitado a garantia do Estado de 278 milhões de dólares, permitindo um máximo de 500 milhões de dólares para equipar com meios militares a EMATUM, mas não deu pormenores.
O antigo número um dos serviços secretos moçambicanos disse não se recordar dos detalhes da criação da EMATUM, mas explicou sobre as garantias que ele próprio solicitou.
A acusação perguntou: "Para que efeito foi solicitada a emissão da garantia de 278 milhões de dólares?"
E Leão respondeu: "Solicitei as garantias, como expliquei inicialmente, e voltei a reiterar que vi as questões operacionais que tinham de ser acauteladas. E remeti ao António Carlos do Rosário, que era o nosso diretor da Inteligência, que estava a interagir com o Ministério das Finanças e outras instituições".
Veja imagens da audição de Ndambi Guebuza
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Porque foi criada a EMATUM?
O juiz da causa, Efigénio Batista, pediu ao antigo diretor geral do SISE para explicar onde e porque foi criada a EMATUM, cujo custo de operação foi orçado em 500 milhões de dólares. Para além da resposta houve alguns momentos de tensão entre o réu e o juiz.
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- Juiz: "Quando era a ProInidicus, você dizia assim, ‘foi no Comando Conjunto, foi no Comando Conjunto', mas para a EMATUM e aqueles 500 milhões de dólares e tal, não fala que foi no Comando Conjunto, não fala que foi no Comando Operativo. Só diz que não se recorda onde foi criado. E também para a MAM não fala do Comando Conjunto, diz não se recorda onde foi criado. Não é isso que disse?"
- Réu: "É sentença isto?"
- Juiz: "Não, estou a perguntar".
- Réu: "Parece sentença. Mas não disse aqui? Deixe-me falar meritíssimo, eu quero explicar".
Mas a explicação de Gregório Leão teve a ver com o facto de as empresas produzirem para pagar a dívida sem a intervenção do Estado. "Falei sobre a ProIndicus longamente e até disse que em 2016 tivemos uma reunião do Comando Conjunto com o atual Presidente, na qualidade de comandante-chefe. Apresentaram uma solução de defesa, uma outra iniciativa de países estrangeiros que iam operar os meios e não estaríamos a reboque. O comandante-chefe disse 'temos a ProIndicus, nós temos os meios, vamos operar com os meios que temos'".
O juiz perguntou ao antigo diretor do SISE por que razão se devia buscar outros meios militares se o ex-ministro da Defesa, Filipe Nyusi, concordou com o uso dos meios existentes na ProIndicus. "O comandante-chefe disse que tem os da ProIndicus e devia-se usar e não buscar os outros meios", retorquiu Leão.
O juiz insistiu: "Exatamente. Por isso veio essa questão, porque gastar 684 milhões de dólares, mais 51 milhões que dá 800 e tal para alegadamente comprar meios, se já havia meios da ProIndicus para fazer aquele trabalho?"
O réu respondeu: "Meritíssimo, estou a responder à primeira parte da sua pergunta. Estava a afirmar que não existem esses meios segundo os autos, eu estou a dizer. O comandante-chefe reconhece que existe, está a mentir quando ele reconhece?"
O juiz voltou a insistir: "O tribunal pergunta, quando chegaram os meios? Os pormenores da data eu remeto ao PCA [António Carlos do Rosário], mas que existem, existem".
A audição de hoje foi interrompida devido a problemas de saúde do réu. Leão é o penúltimo dos 19 arguidos a ser ouvido, faltando ainda interrogar António Carlos do Rosário, ex-presidente das três empresas beneficiárias do dinheiro das dívidas ocultas e antigo diretor da Inteligência Económica do SISE, cuja audição deverá ser marcada para próxima sexta-feira (01.10).
Julgamento das dívidas Ocultas: "Outras coisas..."
O julgamento do caso das dívidas ocultas revela aos poucos mais informações sobre o que muitos consideram o maior escândalo de corrupção de Moçambique. Conheça as peculiaridades do caso e dos seus personagens.
Foto: Fotolia/Carlson
O caso
O escândalo das dívidas ocultas veio ao de cima entre 2013 e 2014. É a maior fraude financeira de Moçambique e prejudicou a nação e a imagem do país. Em causa estão cerca de 2 mil milhões de euros. O esquema tem como "cabeças" altos funcionários do Estado e trabalhadores de bancos como o Credit Suisse. O julgamento começou a 23 de agosto e conta com 19 arguidos, 70 testemunhas e 69 declarantes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Julgamento nas instalações de uma cadeia
A falta de capacidade para albergar muita gente terá levado o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo a optar pelo Estabelecimento Penitenciário Especial de Máxima Segurança da Machava para o julgamento. E é na B.O., como é conhecida a cadeia, onde estão detidos a maioria dos envolvidos no caso. Alguns dos julgamentos mais mediatizados do país costumam acontecer aqui.
Foto: Romeu da Silva/DW
Juiz da causa é de índole duvidosa?
Efigénio Baptista não tem percurso profissional imaculado, foi julgado e condenado duas vezes por ameaças e ofensas corporais num caso de abuso de poder em Manica. Também terá sido alvo de contestação popular em Sofala, que culminou com a queima da sua casa. Alguns setores questionam a escolha do juiz, defendem que deveria ter sido escolhido um juiz sénior para o caso. O "juiz júnior" tem 42 anos.
Foto: Romeu da Silva/DW
"Alérgico a corrupção" e sujeito a pressão
Sobre as condenações, o juiz Efigénio Baptista, numa entrevista ao "O País" esclareceu: "Mas eu recorri da decisão e o Tribunal de Recurso da Beira anulou-a. Por isso, eu não tenho cadastro criminal". Baptista terá estado ainda sob pressão por ser o juiz do caso mais "cabeludo" do momento. A imprensa moçambicana chegou a noticiar sobre possíveis ameaças ao juiz.
Foto: Romeu da Silva/DW
Ordem dos Advogados em representação do povo
A Ordem dos Advoagados de Moçambique (AOM) intervém no julgamento na qualidade de assistente e pretende auxiliar o Ministério Público. O objetivo é assegurar que o povo moçambicano seja informado, atualizado e esclarecido sobre os contornos do processo. São sete representantes, entre eles os ex-bastonários Gilberto Correia e Flávio Menete.
Foto: Romeu da Silva/DW
Bendita seja a mulher entre os homens...
Ana Sheila Marrengula é representante do Ministério Público no julgamento. É a única mulher entre o jurado, o que desencadeou queixas de falta de inclusão. É apreciada pelas suas questões consideradas pertinentes, mas igualmente criticada pelos seus modos pouco profissionais de questionar os réus. Pede indemnização civil ao Estado de cerca de três mil milhões de dólares acrescidos de juros.
Foto: Christoph Hardt/picture-alliance/Geisler-Fotopress
O uniforme da discórdia
No primeiro dia do julgamento os réus não se apresentaram de uniforme prisional, como é prática no país e conforme solicitação do juiz. A defesa contestou a exigência, alegando que a lei não obriga a isso, mas no final valeu a ordem de Efigénio Baptista que defende "tratamento igual" entre os presos. Na terça-feira (24.08) a cor laranja dominava a sala de audiências na B.O.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alexandre Chivale, um advogado (in)suspeito?
Advogado da família Guebuza é a "sensação" entre os causídicos. Para além da sua postura destemida, e até entendida como de afronta, Chivale marcou o primeiro dia do julgamento. É que é administrador da Txopela, empresa suspeita do seu constituinte, Carlos do Rosário. E mais: ocupa uma das casas supostamente adquiridas com o dinheiro do calote. Tribunal deu-lhe 72 horas para deixar o imóvel.
Foto: privat
A memória curta de Cipriano Mutota
Foi a estreia do banco dos réus. Mutota revela que foi traído pelos seus parceiros do negócio na partilha dos "lucros" e não ficou contente. E não se lembra do destino dado a cerca de 656 milhões de euros que terá recebido como "luvas". O ex-diretor do Gabinete de Estudos da secreta praticamente confirmou a acusação do Ministério Público. Diz que Nyusi e Guebuza aprovaram o projeto.
Foto: Romeu da Silva/DW
Manuel Chang regressa no momento "H"
Justamente no dia do arranque do julgamento, a África do Sul anunciou a tão esperada extradição de uma das peças chave do crime, Manuel Chang. O juiz decidiu que o ex-ministro das Finanças será ouvido "na qualidade de declarante, quando estiver no território nacional", em resposta ao pedido da Ordem dos Advogados de Moçambique e reafirmado pelo Ministério Público e pelos advogados dos 19 arguidos.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
O "massagista" do sistema
Foi o lobista do negócio entre o Estado e a Privinvest, identifica-se como facilitador. Num dos emails trocado com a Privinvest mencionou uma "massagem ao sistema", mas no julgamento negou. Recebeu de Jean Boustani cerca de 8,5 milhões de dólares e recusa-se a devolver o valor, alegando que é resultante do seu trabalho. É visto como astuto, embora se tenha destacado por contradições no tribunal.
Foto: Romeu da Silva/DW
A amnésia da "cinderela"
É o terceiro réu a sentar-se no banco. Ndambi é filho do ex-Presidente Armando Guebuza é foi apelidado de cinderela pelos seus parceiros de negócios por ser lento a agir. Terá recebido 33 milhões de dólares de luvas de Jean Boustani, negociador da Privinvest. Não se recorda de quase nada que é questionado pelo juiz, diz que não tem memória de elefante. Foi um dos pivôs no tráfico de influência.