Um investidor da empresa moçambicana ProIndicus, em audiência sobre as dívidas ocultas, em Nova Iorque, disse que rejeitava a oportunidade de negócio se soubesse que o dinheiro seria usado para corrupção e subornos.
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A ICE Canyon, empresa de gestão de investimentos que se viu lesada por investir 15 milhões de dólares em 2013 no empréstimo para a ProIndicus, teria rejeitado o investimento à partida se soubesse do uso ilícito do dinheiro para pagamento de subornos a políticos e banqueiros, disse hoje em tribunal um consultor financeiro, que deu parecer positivo para a compra em 2013.
Aneesh Partap, consultor financeiro para a ICE Canyon, que em 2013 deu parecer favorável para um investimento de 15 milhões de dólares (13,5 milhões de euros), afirmou em depoimento no tribunal, esta terça-feira (29.10), em Nova Iorque, nos Estados Unidos, que saber do pagamento de subornos seria "determinante" para a avaliação do negócio.
"Não teríamos investido, nem sequer olhado. As razões são muitas. Do ponto de vista legal, há a lei das práticas de corrupção estrangeiras e questões de conduta profissional", respondeu Aneesh Partap, quando inquirido pelos procuradores.
A lei das práticas de corrupção estrangeiras condena o pagamento de subornos a membros de Governos. Além disso, continuou a testemunha, "quando existe corrupção, põe em questão a possibilidade de o investimento ser reembolsado. Se o dinheiro não está a ser usado para o propósito produtivo do sistema, também levanta a questão se vai existir receitas. Faz com que a integridade da transação seja posta em causa".
Aneesh Partap acrescentou que, quando existe corrupção, qualquer envolvido no contrato pode "repudiar as dívidas" e não pagar o dinheiro devido.
Violação de acordo
O consultor reviu, no seu testemunho, comunicações feitas com o Credit Suisse em 2013, pelas quais considerou que o projeto seria lucrativo ao final de seis anos no mercado moçambicano que, à data, estava com projeções otimistas. Segundo o consultor, a Privinvest e ProIndicus violaram um acordo de janeiro de 2013 que diziam que "o contratante ou cliente não vão pagar a membros do Governo".
A defesa contestou que todos os memorandos de oferta indicam que existem riscos de corrupção nos mercados emergentes como Moçambique, nomeadamente instabilidade política e existência de corrupção.
Inicialmente, o projeto tinha o valor de 372 milhões de dólares (334,7 milhões de euros), onde a garantia de devoluções dos empréstimos para a ProIndicus era assumida pelo Governo de Moçambique. Os investidores sabiam que, mesmo que os projetos falhassem, o Governo seria responsável por assegurar a devolução do dinheiro.
No processo que decorrer na justiça norte-americana, o principal arguido é Jean Boustani, vendedor de embarcações da empresa Privinvest.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)