Dívidas ocultas: Credit Suisse e Moçambique em tribunal
Lusa
11 de fevereiro de 2021
VR Capital e Farallon Capital Partners investiram cerca de 30 milhões de dólares nos empréstimos do Credit Suisse. Agora estão a levar o banco suíço e o Governo moçambicano a tribunal no processo das dívidas ocultas.
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De acordo com informação divulgada esta quinta-feira (11.02) pela agência de noticiosa Bloomberg, estas duas entidades gestoras de fundos estão a processar o banco suíço devido ao seu envolvimento na angariação de empréstimos para os projetos marítimos falhados em Moçambique.
"Os membros deste grupo [de fundos de investimento] investiram de boa fé e com base em documentos jurídicos vinculativos, mas a dívida agora está em Incumprimento Financeiro e não é paga há mais de quatro anos", disse um porta-voz que representa a VR e a Farallon.
A colocação destas duas ações em tribunal é o último desenvolvimento num processo que dura há vários anos, com ações em tribunal, quer do Estado moçambicano, quer dos intervenienente no processo, que se acusam mutuamente de irregularidades nos empréstimos contraídos pelas empresas públicas Mozambique Asset Management e ProIndicus em meados da década passada.
O escândalo
Em causa estão as "dívidas ocultas" do Estado moçambicano de cerca de 2,2 mil milhões de dólares (cerca de 2 mil milhões de euros) contraídas entre 2013 e 2014 em forma de crédito junto das filiais britânicas dos bancos de investimentos Credit Suisse e VTB em nome das empresas estatais moçambicanas Proindicus, Ematum e MAM. O negócio acentuou uma crise financeira pública e levou Moçambique a entrar em incumprimento no pagamento aos credores internacionais.
Dívidas ocultas: Impactos para Moçambique das revelações de Jean Boustani em tribunal
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Decorre em Moçambique um processo contra 19 arguidos acusados de associação criminosa, chantagem, corrupção passiva, peculato, abuso de cargo ou função, violação de regras de gestão e falsificação de documentos.
O caso também foi alvo de um processo nos Estados Unidos da América (EUA), mas o libanês Jean Boustani, negociador da empresa Privinvest, acusado pela Procuradoria federal dos EUA de conspirações para cometer fraude de transferências, fraude de valores mobiliários e lavagem de dinheiro, foi considerado inocente.
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"Contribuições"
Nos documentos do processo em Londres, a Privinvest alegou ter pagado um milhão de dólares (824,5 mil euros) em 2014 a pedido do antigo diretor de Inteligência Económica do SISE António Carlos do Rosário para a campanha eleitoral de Nyusi e financiado a compra de um veículo Toyota Land Cruiser, também para a campanha.
"Numa reunião com o Sr. Boustani no Aeroporto de Paris-Le-Bourget em 01 de agosto de 2014, o Presidente Nyusi solicitou mais contribuições de campanha e/ou assistência da Privinvest", descreveu.
Referiu também ter contribuído com 10 milhões de dólares (8,245 milhões de euros) "em resposta a um pedido feito pelo Presidente [Armando] Guebuza ao Sr. Boustani para que a Privinvest fizesse donativos para cobrir os custos da campanha eleitoral do Presidente Nyusi e da campanha associada da Frelimo para as eleições para a Assembleia Nacional".
Nyusi ainda não era Presidente na altura em que o pagamento foi feito e, segundo a lei moçambicana, podia receber donativos políticos, disse o porta-voz da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), Caifadine Manasse, à Bloomberg, respondendo em nome do partido e de Nyusi. "O Presidente Nyusi está isento de dívidas ocultas e o partido Frelimo não tem nada a ver com as dívidas ocultas", afirmou.
FMI recomenda:"Não escondam as dívidas como Moçambique"
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Um porta-voz do gabinete do procurador-geral recusou-se a comentar enquanto o caso ainda está no tribunal.
Mais transferências
Nos documentos, a Privinvest também detalhou transferências bancárias para, entre outros, António Carlos do Rosário, para o antigo diretor dos Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE) Gregório Leão, para o antigo ministro das Finanças moçambicano Manuel Chang e para a ex-diretora nacional do Tesouro de Moçambique Isaltina Lucas, alegadamente como investimentos em imobiliário e em outros interesses económicos.
Estes são 'Assistentes' [Third Parties] no processo, juntamente com o ex-presidente Armando Guebuza e o filho mais velho, Armando Ndambi Guebuza.
O processo, iniciado pela Procuradoria-Geral de Moçambique para tentar anular a dívida de 622 milhões de dólares (512,8 milhões de euros) da empresa estatal ProIndicus ao Credit Suisse e pedir uma indemnização que cubra todas as perdas resultantes do escândalo das "dívidas ocultas", tem uma próxima audiência prevista para julho deste ano.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)