Dívidas ocultas: "País ainda não recuperou", diz Machel
Lusa
23 de novembro de 2020
Integrante do Conselho de Administração da Fundação Mo Ibrahim acha "dívidas ocultas" contribui para a deterioração da governação em Moçambique. Para Machel, ocorre também uma "redução do espaço democrático" em África.
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"Moçambique ressentiu-se fortemente da crise provocada pelas 'dívidas ocultas'. O ritmo de crescimento que Moçambique estava a registar ficou seriamente afetado, a disponibilização de recursos para manter esse ritmo ficou severamente diminuída a partir de 2016-17", disse Graça Machel, em entrevista por videoconferência à agência Lusa.
Moçambique ficou na 26.ª posição do Índice Ibrahim de Governação Africana (IIAG) 2020, publicado a semana passada, que mede anualmente a qualidade da governação em 54 países africanos através da compilação de dados estatísticos do ano anterior. Pontuou 49 pontos, menos 0,2 do que há 10 anos, tendo os maiores declínios sido registados nas categorias de "Participação, direitos e inclusão" e de "Segurança e Estado de direito".
"Aquilo que se está a sentir em 2019 já vem desse período em que as 'dívidas ocultas' foram contraídas e retirou-se a ajuda ao Orçamento Geral do Estado para permitir a complementaridade entre os recursos internos do país e os recursos de parceiros de desenvolvimento para manter o ritmo ou fazer crescer o ritmo de desenvolvimento de Moçambique", afirmou a antiga ministra da Educação moçambicana.
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Democracia em risco?
Graça Machel também destacou que a "redução do espaço democrático" que está a acontecer em África, mas também em países como os Estados Unidos da América. Para a ativista, cabe à sociedade civil defender as suas liberdades e direitos.
"Os Estados estão-se a desviar daquilo que está previsto nas constituições, nas leis e mesmo na razão de ser das instituições, como, por exemplo, as instituições de justiça, os partidos políticos. (...) Em vários casos, está a exercer uma ação de repressão contra os cidadãos", comentou.
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Esta conjuntura, para a também membro do conselho de administração da Fundação Mo Ibrahim, cria um problema sobre "quem pressiona quem" ao nível da comunidade internacional para proteger a democracia, urgindo a sociedade civil a intervir.
"É a ação dos cidadãos organizados, estejam no norte ou no sul, que tem de ser muito mais contundente, muito mais organizada, mais visível e audível, mais relevante, capaz de mandar e exigir que esses espaços democráticos sejam protegidos. Não é um problema nem do norte nem do sul sozinhos", defendeu Graça Machel.
Graça Machel, que integra o conselho de administração da Fundação Mo Ibrahim, nota ainda progressos na participação das mulheres ao nível social e político e também na intervenção da justiça, por exemplo, no caso das "dívidas ocultas".
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)