"Dívidas ocultas": O que significa o recurso em Londres?
DW (Deutsche Welle)
23 de abril de 2025
Privinvest foi autorizada a submeter recurso. Para preservar a sentença favorável sobre as "dívidas ocultas", Moçambique precisa cooperar com a Justiça, adverte o pesquisador Borges Nhamirre.
Moçambique venceu, em 2024, uma ação judicial contra a Privinvest no âmbito do escândalo financeiro das "dívidas ocultas"Foto: Roberto Paquete/DW
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A Justiça britânica aceitou que a empresa de construção naval Privinvest submeta recurso à sentença que a obrigava a indemnizar Moçambique com 1,65 mil milhões de euros no caso das dívidas ocultas, gerando novo impasse no escândalo financeiro.
O pedido de recurso, apresentado em dezembro de 2024, sustenta que Moçambique não cumpriu a obrigação de divulgar documentos relevantes para o processo. A empresa lamenta ainda que essas alegadas omissões não tenham sido tidas em conta na decisão judicial.
Em declarações à DW África, o especialista Borges Nhamirre, do Instituto de Estudos de Segurança de África, considera que a decisão representa um revés para Moçambique. Segundo Nhamirre, a execução da indemnização fica agora suspensa, o que atrasa o ressarcimento a que o país teria direito com a sentença anterior.
Apesar disso, o analista sublinha que "nada está perdido" e exorta as autoridades moçambicanas a colaborarem com a Justiça britânica para manterem a vantagem no processo judicial.
Borges Nhamire - Pesquisador do Instituto de Estudos de Segurança de ÁfricaFoto: R. da Silva/DW
DW África: O que significa, na prática, o Tribunal de Recursos britânico ter aceite o pedido de recurso da Privinvest?
Borges Nhamirre (BN): Significa que o processo volta de novo para ser apreciado por um tribunal de outra instância. O impacto imediato é que Moçambique não vai receber, pelo menos para já, a indemnização, que é um bom valor para os cofres do Estado. O segundo ponto é que aceitar o recurso não significa que a Privinvest ganhou.
Moçambique continua a estar numa posição privilegiada, porque ganhou o caso em tribunal de primeira instância. Este tipo de tribunal julga matéria de facto e de direito. Geralmente, o tribunal de segunda instância, que vai apreciar recurso, não julga matéria de facto, julga matéria de direito para ver se a lei foi bem aplicada ou não.
DW África:Uma das alegações para poder ver a sua pretensão de recorrer aceite foi a de que houve ocultação de documentos por parte de Moçambique. Acredita que esta alegação pode influenciar na reversão da sentença anterior?
Dívidas ocultas: Impactos da decisão em Londres
09:45
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BN: Houve, de facto, ocultação de documentos. São documentos classificados dos serviços de inteligência do Estado, mas qualquer país no mundo tem documentos classificados que não pode entregar, sobretudo a um tribunal estrangeiro. Então, nós não sabemos o que é que Moçambique quer proteger com estes documentos que ocultou.
DW África: Está a dizer que, em termos concretos, Moçambique não seria penalizado em Londres por ter ocultado estes documentos?
BN: Acredito que sim, porque, mesmo em primeira instância, Moçambique ganhou o caso tendo ocultado esses documentos.
DW África:Quais seriam as consequências económicas para Moçambique se o país perder esta indemnização de cerca de 1,65 mil milhões de euros, no âmbito do escândalo das "dívidas ocultas"?
BN: Eu diria que a maior perda de Moçambique neste caso seria mesmo do ponto de vista financeiro, porque está em jogo bastante dinheiro para um país com enormes desafios financeiros.
DW África:Pode uma possível reviravolta, por exemplo, desestabilizar a economia moçambicana ou agravar a dívida pública?
Dívidas ocultas: O crime compensa?
22:37
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BN: Se olharmos para o valor que está em jogo, sim. É muito dinheiro. Além disso, se um tribunal de uma praça credível como o de Londres condena, em definitivo, a Privinvest a pagar, ou uma sentença transitada em julgado afirma que Moçambique não deve pagar a dívida, isso pode contribuir para retirar Moçambique dos bloqueios ao acesso aos mercados.
DW África:O que tem de ser feito por Moçambique para que mantenha essa sua vantagem e continue com a sentença a seu favor?
BN: Tentar, no máximo, colaborar com a Justiça, disponibilizando o maior número de documentos possível. Se houver cidadãos moçambicanos que forem arrolados para testemunhar, o Estado moçambicano deve garantir que estes vão lá, independentemente de serem pessoas politicamente expostas. Essas pessoas devem ir ao tribunal fazer os depoimentos.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)