Afinal, houve ou não uma "reviravolta em Londres" no processo das dívidas ocultas? Em entrevista à DW, investigador do CIP entende que não: "A PGR tem defendido muito bem os interesses da sociedade moçambicana".
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O jornal "Canal de Moçambique" noticiou, na quarta-feira (03.03), uma "reviravolta em Londres" no processo das chamadas "dívidas ocultas".
Segundo a publicação, a Procuradoria-Geral da República (PGR) de Moçambique teria pedido para retirar a acusação de que os contratos da Privinvest foram obtidos por meio de subornos. Isto depois de a empresa ter dito que pagara um milhão de dólares ao atual Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, além de 10 milhões de dólares para financiar a campanha da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), em 2014.
No entanto, a PGR tem uma posição diferente. E, contrariamente ao que foi avançado na quarta-feira, o Estado não terá mudado uma vírgula na acusação, entende Borges Nhamire. Em entrevista à DW, o analista do Centro de Integridade Pública (CIP) de Moçambique explica os contornos do processo.
DW África: A PGR de Moçambique retirou de facto a acusação de suborno? O que resta da acusação?
Borges Nhamire (BN): Eu penso que não foi isso que aconteceu. O que está em causa é o foro do processo, se o mesmo será na Justiça inglesa ou se será em tribunal arbitral na Suíça. A Privinvest defende que, nos contratos que assinou com as três empresas moçambicanas - Mozambique Asset Manangement (MAM), Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM) e ProIndicus -, todas as disputas resultantes destes contratos sejam resolvidas pelo Tribunal Internacional de Arbitragem da Suíça.
DW África: A PGR mantém a acusação de suborno?
BN: A PGR moçambicana mantém a acusação de suborno, obviamente. É preciso que as pessoas compreendam que aconteceram dois tipos de subornos, um para a assinatura de garantias e o outro nos contratos de fornecimento, ou seja, para aquisição de equipamentos e serviços da Privinvest. O que Moçambique está a exigir agora é que a Privinvest seja condenada, juntamente com os outros réus, 12 no total, porque houve fraude nos contratos de garantias. É também preciso compreender o que Moçambique está a pedir à Justiça britânica: está a pedir que as garantias emitidas a favor dos três empréstimos sejam declaradas nulas e sem efeito. Não está a discutir os subornos que aconteceram no âmbito dos contratos de fornecimento.
DW África: Portanto, não houve "reviravolta" em Londres? Não houve uma mudança da estratégia por parte da Procuradoria?
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BN: Não houve. Moçambique não retirou nenhuma acusação de suborno feita pela Privinvest aos funcionários moçambicanos. Simplesmente não levou ao tribunal as acusações de suborno no âmbito dos contratos de fornecimento; levou apenas a acusação de suborno no âmbito dos contratos de garantias emitidas por Manuel Chang, a que a Privinvest confessou ter pago sete milhões de dólares.
DW África: Você e o CIP acompanham o processo das dívidas ocultas. De uma forma geral, acha que a procuradora-geral da República, Beatriz Buchili, age de forma independente e baseada em critérios jurídicos? Tem defendido bem os interesses da sociedade civil moçambicana?
BN: Eu diria que, no seu todo, tem defendido muito bem os interesses da sociedade moçambicana. Se formos analisar, a Procuradoria iniciou o processo em Londres para declarar nulas as garantias. O que significa isso? Significa que a Procuradoria está a dizer que Moçambique não quer pagar as dívidas ocultas. O Estado moçambicano está a fazer isso, e está fazer muito bem. Está a contratar advogados britânicos, com conhecimento desta matéria, e que já processaram empresas do grupo Privinvest - e o proprietário deste grupo, Iskandar Safa, além de empresas do grupo Credit Suisse e seus antigos colaboradores. Essa é, portanto, a primeira dimensão. A segunda dimensão é que, em Moçambique, a PGR processou quase todas as pessoas envolvidas no processo das dívidas ocultas, sendo que algumas são pessoas aparentemente intocáveis. Estamos a falar de antigos diretores do serviço de inteligência, antigos ministros, assessores do Presidente, incluindo o seu próprio filho.
DW África: Portanto, considera infundadas acusações de que o atual Presidente, Filipe Nyusi, teria pressionado a PGR para retirar essa acusação de suborno?
BN: Eu não tenho bases para dizer que o Presidente fez isso. Na verdade, não houve nenhuma retirada.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)