Mukwege: "Não trate a violência sexual como um tabu"
Susanne Maria Krauß | ar
10 de outubro de 2018
Se todos os homens agissem e pensassem como o ginecologista congolês Denis Mukwege, o mundo seria melhor. Entrevista exclusiva com um dos galardoados do Prémio Nobel da Paz-2018.
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O ginecologista congolês Dr. Denis Mukwege fundou o Hospital Panzi na capital da província, Bukavu (no nordeste da República Democrática do Congo - RDC). O médico de 63 anos, juntamente com a iraquiana Nadia Murad, que defende a situação das mulheres yazidis (uma comunidade do Iraque que os 'jihadistas' consideram herética), foram galardoados com o Prémio Nobel da Paz de 2018 pela defesa das mulheres que enfrentaram a violência sexual.
DW: Este ano, o Comité do Prémio Nobel decidiu focar a atenção na violência sexual sofrida por mulheres em todo o mundo. O que esta iniciativa significa para você e seus colegas?
Denis Mukwege (DM): Eu acho que foi uma ótima decisão. Muitas pessoas no mundo e até pessoas no meu país não entendem o que significa usar a violação como arma de guerra. Elas não entendem como o estupro pode destruir uma pessoa. Não apenas a vítima, mas como uma violação destrói famílias, a sociedade e um país inteiro. Eu acho que é muito importante prestar atenção a esse fato. Se uma sociedade ou um país é destruído dessa maneira, essa destruição pode durar por muitas décadas. Testemunhamos isso aqui no hospital (em Bukavu). Não devemos apenas abordar este problema em prol das vítimas, mas também devemos evitar que algo do género aconteça no futuro.
DW: O que isso significa em termos concretos?
DM: Aqui no hospital cuidamos de vítimas de violência sexual. Não as tratamos apenas fisicamente, mas também temos que cuidar do trauma delas. Isso pode demorar muito tempo. Depende do trauma que a vítima experimentou. E mais tarde trata-se de reintegrar essas mulheres na sociedade. E isso não pode ser alcançado se elas não conseguirem ser independentes. Com os três pilares - ajuda médica, psicossocial e socioeconómica - tentamos restaurar a justiça. Elas (as mulheres) querem justiça. Talvez estejam indo bem economicamente, mas se perguntam: por que isso aconteceu comigo? Por que esse homem que me violou ainda é livre? E continua a violar? Hoje há mulheres que se expressam e exigem justiça. Mas isso leva muito tempo.
DW: Denis Mukwege desenvolve esse trabalho há quase 20 anos. O que mudou e qual é a situação atual das mulheres no leste do Congo?
DM: O que mudou ... posso ver isso hoje. As mulheres estão a lutar para quebrar o silêncio. Quando o problema surgiu nesta região, foi muito difícil para as mulheres. Mesmo se houvesse todas as evidências de que uma mulher havia sido violada e gravemente ferida na área genital, elas geralmente vinham à consulta com algum outro motivo, porque tinham vergonha do que tinha acontecido. Hoje vejo que as mulheres são mais fortes. Elas apresentam queixas à polícia, vão ao hospital e dizem: 'Veja o que aconteceu comigo e sei quem é o responsável'. Acho que esse é um grande passo na luta contra a violência sexual. Porque enquanto as pessoas tratam a violência sexual como um tabu, algo que não pode ser falado, esse comportamento também protege o violador. Para falar sobre isso é uma maneira de mostrar os autores: Se você fizer isso comigo, todo mundo vai saber sobre isso e a vergonha não estará do meu lado, mas quando isso acontece, as coisas mudam. Como disse, vai levar tempo, mas vai acontecer.
DW: De onde vem a sua motivação? O que lhe dá força para realizar o seu trabalho?
DM: Quem conhece as mulheres que tratamos aqui verá que elas podem ser filhas, esposas, mães, netas... Eu acho que aquelas que não conseguem identificar-se com as suas colegas ignoram o sofrimento dos outros. Eu acho que isso é um ponto crucial. É muito importante para mim. Quando vejo alguém sofrendo, sinto compaixão e me coloco na situação deles. Isso é muito importante. Um segundo ponto é que tenho visto a força das mulheres. Estou muito impressionado com o quão forte as mulheres podem ser. Mesmo que cheguem aqui em circunstâncias muito difíceis, feridas, humilhadas psicologicamente, elas levantam-se depois e lutam pelos seus direitos. Isso tocou-me pessoalmente e encoraja-me a continuar.
DW: O movimento #MeToo tornou-se mundialmente conhecido e recebe muita atenção. Como vê esse movimento e como é percebido aqui no Congo?
DM: Apoiamos o movimento #MeToo cem por cento. MeToo é uma maneira de lutar contra o sistema patriarcal. É uma forma de denunciar os violadores. Quando começam a entender que se eles violarem e machucarem as mulheres, essa mulher dirá a verdade e eles sentirão vergonha ... Aqui na região estamos a trabalhar afincadamente para quebrar o silêncio. E acho que o #MeToo tem o mesmo objetivo. Se o silêncio for quebrado, os violadores vão entender que isso não é mais um tabu. É por isso que apoio esse movimento.
Prémios
Recorde-se que entre os prémios recebidos, Denis Mukwege foi distinguido com o Prémio Sakharov 2014 do Parlamento Europeu, galardão que premeia a liberdade de pensamento e a defesa dos direitos humanos.
Um ano antes, recebeu o prémio da Fundação Right Livelihood Awarad 2013, conhecido como o Nobel Alternativo dos Direitos Humanos, pelo seu trabalho com mulheres vítimas de violência sexual.
O médico recebeu ainda o Prémio Gulbenkian em 2015.
Este primeiro prémio Nobel concedido a um congolês criou uma onda de alegria e orgulho nacional no maior país da África subsaariana, com um enorme potencial económico, mas prejudicado por várias crises.
O dia-a-dia no leste do Congo
Há cinco anos, os rebeldes do M23 invadiram Goma, no leste da República Democrática do Congo. Na região multiplicavam-se os confrontos entre o grupo e o exército congolês e milícias de autodefesa. Hoje é muito diferente.
Foto: DW/Flávio Forner
Amanhece em Goma
Amanhece cedo em Goma, a capital de Kivu do Norte, no leste da RD Congo. As ruas enchem-se de comerciantes e do vaivém das motos. Esta é uma área de comércio junto à fronteira com o Ruanda. Muitos congoleses e ruandeses atravessam diariamente a fronteira para compras e trabalho. Goma vive um relativo clima de paz desde que o grupo rebelde de origem tutsi M23 foi desmantelado em 2013.
Foto: DW/Flávio Forner
Peixes do Lago Kivu
Ao nascer do sol, começa a azáfama em Goma. Nesta foto, mulheres colocam ao sol peixes frescos do Lago Kivu para preparar a refeição do dia num abrigo que acolhe crianças e adolescentes que estiveram envolvidos em grupos armados no leste do Congo. O abrigo fica num subúrbio de Goma, numa área populosa chamada Keshero.
Foto: DW/Flávio Forner
Trabalho de braços
O sol está a pique, mas o trabalho não pára. Junto à vila de Sake, trabalhadores retiram areia de um canteiro em redor da base militar da Missão de Paz das Nações Unidas na República Democrática do Congo, a MONUSCO. A vila de Sake, com uma população empobrecida, fica a uma hora (25km) a leste de Goma. Muitos dos seus habitantes dependem do comércio na cidade.
Foto: DW/Flávio Forner
Estrada de volta à vida
Estrada de terra que liga Goma a Kiwanja. Camiões cheios de trabalhadores e militares percorrem diariamente os 70km que separam as duas cidades. O trajeto demora em média quatro horas. Há menos de cinco anos, a estrada que corta a zona sul do Parque Nacional Virunga era extremamente perigosa devido aos ataques das milícias Mai-Mai e do grupo rebelde M23.
Foto: DW/Flávio Forner
Estradas esburacadas
Área rural junto à vila de Sake. As estradas que ligam as vilas e as cidades em Kivu do Norte estão esburacadas. Só veículos todo-o-terreno são capazes de passar por aqui, mesmo para trajetos curtos. Nesta foto, uma carrinha transporta passageiros e, no tejadilho, um homem aconchega-se entre um colchão e maços de folhas de mandioca que são vendidas em mercados em Goma.
Foto: DW/Flávio Forner
Fonte de sustento
Mulheres e crianças vendem folhas de mandioca na beira da estrada. A cidade de Kiwanja é circundada por áreas de cultivo de legumes. Muitas famílias dependem da venda de alimentos para garantir o seu sustento.
Foto: DW/Flávio Forner
Trabalho social
Militares do Batalhão de Operações Especiais da Guatemala, que integram a Missão de Paz da ONU no Congo, ajudam igrejas e centros comunitários na vila de Sake, a 25km de Goma. As crianças da vila recebem material escolar e brinquedos.
Foto: DW/Flávio Forner
Desnutrição infantil e materna
Bebés que sofrem de desnutrição são internados no Hospital Muungano La Résurrection, nos arredores de Goma. O hospital depende de doações e tem falta de medicamentos e suplementos alimentares. Muitas mães também estão desnutridas e chegam a ficar internadas dez dias.
Foto: DW/Flávio Forner
No hospital
Nos corredores do Hospital Panzi, em Bukavu, capital de Kivu do Sul. Fundado pelo conhecido ginecologista congolês Denis Mukwege, o hospital fica na zona de Ibanda e tornou-se uma referência no tratamento de vítimas de violência sexual e reparação de fístulas obstétricas. Desde que foi fundado em 1999, a equipa médica já tratou 85.000 pacientes, incluindo 50.000 vítimas de violência sexual.
Foto: DW/Flávio Forner
Festa no hospital
Este adolescente congolês vestiu-se a rigor para participar nas atividades culturais do Hospital Heal Africa, no centro de Goma. Esta foto foi tirada no Dia Internacional da Criança Africana (16 de junho). O hospital promoveu neste dia uma série de apresentações de dança e teatro.
Foto: DW/Flávio Forner
Publicidade "VIP"
Nas ruas de Bukavu, Kivu do Sul, destaca-se a publicidade de um cabeleireiro para homens. O 'Salon VIP' tem nas paredes uma pintura com o rosto de Patrice Lumumba (à esq.) e Nelson Mandela (à dir.). Mandela simbolizou a luta anti-apartheid na África do Sul; Lumumba foi o pai da independência do Congo Belga e primeiro-ministro do recém país independente, tendo sido assassinado em 1961.
Foto: DW/Flávio Forner
De volta da escola
De uniforme, Pierre de 7 anos exibe o seu manual escolar e uma garrafa de plástico que serve como estojo para guardar os lápis. Tinha acabado de regressar da escola e seguia a pé para a sua casa na pequena vila de Mumosho, no interior de Kivu do Sul. O ensino público no Congo não é gratuito. Para manter uma criança na escola, as famílias têm de conseguir pagar cerca de 300 dólares por ano.
Foto: DW/Flávio Forner
Curso para mulheres no interior
Mulheres participam em cursos de empreendedorismo na vila de Mumosho, a 50 minutos de Bukavu. Muitas sofreram violência doméstica e abriram agora o seu próprio negócio, ganhando dinheiro com atividades artesanais e agricultura. Os cursos são oferecidos pela organização Women for Women International, que também realiza sessões para homens da comunidade com debates sobre o respeito pelas mulheres.
Foto: DW/Flávio Forner
Futebol em Goma
Os congoleses amam futebol. Ao final da tarde, depois do trabalho, muitos reúnem-se em campos de terra batida em bairros próximos do centro de Goma para jogar partidas de futebol.
Foto: DW/Flávio Forner
Missão de Paz
Capacetes azuis da MONUSCO são responsáveis por patrulhar as ruas de Goma. Esta foto foi tirada no alto do Monte Goma, no centro da cidade. O Uruguai tem uma base militar no topo da colina, um ponto estratégico. Ao fundo fica o vulcão Nyiragongo, 20 km a norte da cidade - o vulcão mais ativo de África. A sua última erupção foi em 2002 e arrasou Goma.
Foto: DW/Flávio Forner
Uma geração de crianças de rua
Centenas de crianças de rua deambulam pelas ruas de Goma. Segundo os Médicos Sem Fronteiras (MSF), há mais de 2.000 crianças sem tecto, muitas delas perdidas ou abandonadas pelas famílias, que vivem de esmolas e roubos. De dia, vagueiam pelas ruas do centro e, de noite, abrigam-se em terrenos baldios ou debaixo dos buracos de esgoto das principais rotundas.
Foto: DW/Flávio Forner
Clínica móvel para crianças de rua
Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) têm uma clínica móvel, o 'Bobo Mobile', para atender os meninos órfãos ou que foram expulsos de casa. "Goma é um hub humanitário, mas surpreendeu-me que não havia nenhum projeto dedicado às crianças de rua", disse Carla Melki, coordenadora deste projeto dos Médicos Sem Fronteiras na RDC (República Democrática do Congo).
Foto: DW/Flávio Forner
Inspiração para os mais novos
De farda e boina cobrindo os dreadlocks, o artista congolês Wanny S-king conversa com crianças de rua em Goma. O rapper costuma dedicar-lhes canções. Conhecido entre os mais novos, Wanny é dos poucos que, sem medo, lida diariamente com eles e faz concertos, divulgando uma mensagem de paz. Inspirados pelo rapper, muitos começaram a compor letras e sonham ter a sua própria banda.