Denise Namburete: "Várias vezes tive de fugir de Moçambique"
António Cascais
9 de dezembro de 2021
Em entrevista à DW, fundadora da ONG "N'weti Comunicação para Saúde" diz-se alegre com reconhecimento internacional e admite ter sido alvo de "ameaças", além de "muita ostracização" por parte de dirigentes políticos.
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Denise Namburete é uma das representantes da sociedade civil moçambicana que ao longo dos últimos anos se bateu para que os responsáveis pelo caso das dívidas ocultas fossem julgados, dentro e fora de Moçambique.
O seu trabalho foi agora reconhecido a nível internacional. A fundadora e diretora-executiva da organização não-governamental moçambicana "N'weti" recebeu a edição 2021 do "Prémio Campeões Anticorrupção", atribuído pelo departamento de Estado norte-americano.
A DW falou com a ativista moçambicana a propósito do galardão.
DW África: O que representa este prémio para si?
Denise Namburete (DN): É certamente com bastante alegria que, tanto eu como a minha organização, recebem este prémio que representa todos os moçambicanos e representa todas as mulheres moçambicanas. Representa todos aqueles que estiveram viva e arduamente a expressar o seu desagrado com vários casos de corrupção que foram expostos em Moçambique, não só sobre as dívidas ilegais, mas muitos outros.
DW África: O trabalho da Denise Namburete nem sempre foi bem visto. Foi alvo de pressões?
DN: Nós sofremos muita pressão em Moçambique, de vários quadrantes da sociedade, principalmente daqueles aliados do sistema que acreditavam que efetivamente este era um caso de um contrato legal, de um contrato de soberania, de Defesa Nacional, e que tinha acontecido dentro dos trâmites legais e procedimentos legais. Recebemos também muita retaliação e muita ostracização de dirigentes políticos e de pessoas muito bem colocadas no sistema político. Fora de Moçambique, sofremos muita pressão do Crédit Suisse, devo dizer. Fomos investigados. Houve uma tentativa muito grande de recolher informações que nos pudessem descredibilizar. Sofremos bastante pressão e ameaças. Várias vezes tive de fugir de Moçambique. Várias vezes recebi chamadas de alerta de que estava em perigo e que precisava de desaparecer por algum tempo.
DW África: Acredita que vai ser feita justiça?
DN: Acho que de alguma forma nós conseguimos atingir esse objetivo, seja através das publicações internacionais, seja através de toda a cobertura do julgamento do Jean Boustani, através do julgamento agora, através das exposições dos diferentes atores que estão com os processos legais em Londres, seja dos investidores, seja do caso da Procuradoria-Geral da República (PGR) de Moçambique, seja do processo do Crédit Suisse. Todos estes processos trazem informações bastante ricas sobre os diferentes aspetos que contornaram a contração dessas dívidas. Depois temos o nível de responsabilização. Estamos a acompanhar o nível de responsabilização mais localizado, mais doméstico em Moçambique e que eu acho que há uma expectativa muito limitada, na medida em que temos também a expectativa de que os dirigentes de mais alto nível possam partilhar a sua perspetiva sobre todo o processo de contração dessas dívidas. A nível internacional, tínhamos uma expectativa muito grande de que o tribunal consolidasse todos os casos e não só. Isso aconteceu e é bastante positivo. Vai ser um julgamento bastante longo, bastante complexo, com muitas partes interessadas, mas eu acho que só nos resta torcer para que a justiça seja feita também em Londres.
DW África: Sabemos que se encontra na África do Sul, onde decorre um caso ligado a este processo das dívidas ocultas que é o caso de Manuel Chang.
DN: Em relação ao caso de Manuel Chang, continuamos na luta e continuamos a interpor todos os recursos necessários para impedir que ele volte a Moçambique. Continuamos a acreditar que, da mesma forma que os dirigentes de alto nível que estiveram envolvidos neste processo não serão indiciados, dificilmente poderemos acreditar que Manuel Chang será indiciado e julgado em Moçambique. Continuaremos a lutar para que ele seja efetivamente julgado num espaço onde exista efetivamente uma acusação contra ele.
DW África: Este caso das dívidas ocultas é um exemplo de como grupos ou indivíduos se aproveitam das fragilidades de um país. O Estado moçambicano foi capturado, por assim dizer. Acha que foi capturado por indivíduos e grupos moçambicanos ou acha que a iniciativa para a corrupção partiu de instâncias estrangeiras?
DN: Acho que é evidente que a iniciativa do projeto veio da ala da Privinvest. Em Moçambique, a iniciativa encontrou um espaço favorável para que a fraude acontecesse e nós temos que assumir a responsabilidade pelas nossas fragilidades, pelas lacunas dos nossos sistemas, das nossas políticas e das nossas instituições e que criam condições para que fraudes desta natureza, que são arquitetadas fora de Moçambique, encontrem espaço para vincar em Moçambique.
Julgamento das dívidas Ocultas: "Outras coisas..."
O julgamento do caso das dívidas ocultas revela aos poucos mais informações sobre o que muitos consideram o maior escândalo de corrupção de Moçambique. Conheça as peculiaridades do caso e dos seus personagens.
Foto: Fotolia/Carlson
O caso
O escândalo das dívidas ocultas veio ao de cima entre 2013 e 2014. É a maior fraude financeira de Moçambique e prejudicou a nação e a imagem do país. Em causa estão cerca de 2 mil milhões de euros. O esquema tem como "cabeças" altos funcionários do Estado e trabalhadores de bancos como o Credit Suisse. O julgamento começou a 23 de agosto e conta com 19 arguidos, 70 testemunhas e 69 declarantes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Julgamento nas instalações de uma cadeia
A falta de capacidade para albergar muita gente terá levado o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo a optar pelo Estabelecimento Penitenciário Especial de Máxima Segurança da Machava para o julgamento. E é na B.O., como é conhecida a cadeia, onde estão detidos a maioria dos envolvidos no caso. Alguns dos julgamentos mais mediatizados do país costumam acontecer aqui.
Foto: Romeu da Silva/DW
Juiz da causa é de índole duvidosa?
Efigénio Baptista não tem percurso profissional imaculado, foi julgado e condenado duas vezes por ameaças e ofensas corporais num caso de abuso de poder em Manica. Também terá sido alvo de contestação popular em Sofala, que culminou com a queima da sua casa. Alguns setores questionam a escolha do juiz, defendem que deveria ter sido escolhido um juiz sénior para o caso. O "juiz júnior" tem 42 anos.
Foto: Romeu da Silva/DW
"Alérgico a corrupção" e sujeito a pressão
Sobre as condenações, o juiz Efigénio Baptista, numa entrevista ao "O País" esclareceu: "Mas eu recorri da decisão e o Tribunal de Recurso da Beira anulou-a. Por isso, eu não tenho cadastro criminal". Baptista terá estado ainda sob pressão por ser o juiz do caso mais "cabeludo" do momento. A imprensa moçambicana chegou a noticiar sobre possíveis ameaças ao juiz.
Foto: Romeu da Silva/DW
Ordem dos Advogados em representação do povo
A Ordem dos Advoagados de Moçambique (AOM) intervém no julgamento na qualidade de assistente e pretende auxiliar o Ministério Público. O objetivo é assegurar que o povo moçambicano seja informado, atualizado e esclarecido sobre os contornos do processo. São sete representantes, entre eles os ex-bastonários Gilberto Correia e Flávio Menete.
Foto: Romeu da Silva/DW
Bendita seja a mulher entre os homens...
Ana Sheila Marrengula é representante do Ministério Público no julgamento. É a única mulher entre o jurado, o que desencadeou queixas de falta de inclusão. É apreciada pelas suas questões consideradas pertinentes, mas igualmente criticada pelos seus modos pouco profissionais de questionar os réus. Pede indemnização civil ao Estado de cerca de três mil milhões de dólares acrescidos de juros.
Foto: Christoph Hardt/picture-alliance/Geisler-Fotopress
O uniforme da discórdia
No primeiro dia do julgamento os réus não se apresentaram de uniforme prisional, como é prática no país e conforme solicitação do juiz. A defesa contestou a exigência, alegando que a lei não obriga a isso, mas no final valeu a ordem de Efigénio Baptista que defende "tratamento igual" entre os presos. Na terça-feira (24.08) a cor laranja dominava a sala de audiências na B.O.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alexandre Chivale, um advogado (in)suspeito?
Advogado da família Guebuza é a "sensação" entre os causídicos. Para além da sua postura destemida, e até entendida como de afronta, Chivale marcou o primeiro dia do julgamento. É que é administrador da Txopela, empresa suspeita do seu constituinte, Carlos do Rosário. E mais: ocupa uma das casas supostamente adquiridas com o dinheiro do calote. Tribunal deu-lhe 72 horas para deixar o imóvel.
Foto: privat
A memória curta de Cipriano Mutota
Foi a estreia do banco dos réus. Mutota revela que foi traído pelos seus parceiros do negócio na partilha dos "lucros" e não ficou contente. E não se lembra do destino dado a cerca de 656 milhões de euros que terá recebido como "luvas". O ex-diretor do Gabinete de Estudos da secreta praticamente confirmou a acusação do Ministério Público. Diz que Nyusi e Guebuza aprovaram o projeto.
Foto: Romeu da Silva/DW
Manuel Chang regressa no momento "H"
Justamente no dia do arranque do julgamento, a África do Sul anunciou a tão esperada extradição de uma das peças chave do crime, Manuel Chang. O juiz decidiu que o ex-ministro das Finanças será ouvido "na qualidade de declarante, quando estiver no território nacional", em resposta ao pedido da Ordem dos Advogados de Moçambique e reafirmado pelo Ministério Público e pelos advogados dos 19 arguidos.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
O "massagista" do sistema
Foi o lobista do negócio entre o Estado e a Privinvest, identifica-se como facilitador. Num dos emails trocado com a Privinvest mencionou uma "massagem ao sistema", mas no julgamento negou. Recebeu de Jean Boustani cerca de 8,5 milhões de dólares e recusa-se a devolver o valor, alegando que é resultante do seu trabalho. É visto como astuto, embora se tenha destacado por contradições no tribunal.
Foto: Romeu da Silva/DW
A amnésia da "cinderela"
É o terceiro réu a sentar-se no banco. Ndambi é filho do ex-Presidente Armando Guebuza é foi apelidado de cinderela pelos seus parceiros de negócios por ser lento a agir. Terá recebido 33 milhões de dólares de luvas de Jean Boustani, negociador da Privinvest. Não se recorda de quase nada que é questionado pelo juiz, diz que não tem memória de elefante. Foi um dos pivôs no tráfico de influência.