Parlamento moçambicano aprova revisão da Constituição
Leonel Matias (Maputo) | Lusa
23 de maio de 2018
A Assembleia da República de Moçambique aprovou, em Maputo, na generalidade e por consenso, a revisão pontual da Constituição da República para o aprofundamento da descentralização no país.
Publicidade
A proposta de revisão pontual da Constituição foi aprovada pelos 234 deputados presentes na plenária desta quarta-feira (23.05), das três bancadas, Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), partido da maioria, Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), principal partido da oposição e Movimento Democrático de Moçambique (MDM).
Os deputados celebraram a aprovação de pé, com fortes aplausos e abraços. Esta revisão prevê algumas inovações no ordenamento constitucional moçambicano, como a criação de órgãos descentralizados de governação provincial e distrital.
A partir das eleições gerais de 2019, os governadores provinciais passam a ser eleitos. Serão cabeças-de-lista dos partidos, coligações de partidos políticos ou grupos de cidadãos eleitores, deixando de ser nomeados pelo chefe de Estado.
Futuramente, os administradores distritais também passarão a ser eleitos. Transitoriamente, até às eleições de 2024, o administrador de distrito será nomeado pelo ministro da Administração Estatal, depois de consultado o governador da província.
Ao abrigo da proposta de revisão constitucional aprovada esta quarta-feira, os presidentes de municípios passam a ser eleitos também como cabeças-de-lista à assembleia municipal, já a partir das eleições de 10 de outubro de 2018, deixando de ser sufragados diretamente em boletim de voto próprio, como se verificava desde as primeiras eleições municipais em 1998.
Cada província terá um secretário de Estado
Nas províncias será instituída uma nova figura: um secretário de Estado, a ser nomeado pelo Presidente da República, que tem a função de assegurar a realização das funções exclusivas e de soberania do Estado, que não são objeto do processo de descentralização.
A proposta de revisão pontual da Constituição exclui funções de soberania do Estado, como a definição de políticas nacionais de defesa, segurança e ordem pública, fiscalização das fronteiras, emissão de moeda, bem como relações diplomáticas.
Também estão fora da alçada dos poderes descentralizados os recursos naturais, minerais e energia, gestão das águas interiores, mar territorial, zona económica exclusiva, bem como a criação e alteração de impostos.
Reações à revisão constitucional
O ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Isac Chande, explicou que a revisão constitucional tem como pressuposto a consolidação do ideal da paz efetiva e ainda "a estabilidade política, o desenvolvimento económico harmonioso e a importância da equidade social".
Os chefes das três bancadas parlamentares saudaram a aprovação do documento. Margarida Talapa, da FRELIMO, sublinhou que Moçambique vai continuar um estado uno e indivisível, mas considerou importante que se prossiga agora com o processo de desmilitarização, desmobilização e reintegração das forças residuais da RENAMO.
"É crucial para que se conformem com os ditames da Constituição da República de Moçambique", afirmou Talapa.
Ivone Soares, da RENAMO, respondeu que o seu partido está disponível para avançar com as questões militares. Considerou ainda que a aprovação do projeto de descentralização resulta de "muito sangue derramado" por várias figuras que lutaram por esta causa, nomeadamente o constitucionalista Gilles Cistac e os os negociadores da paz Jeremias Pondeca e José Manuel.
"Esta revisão da Constituição, mesmo sendo pontual, vai dinamizar uma nova arquitetura de unidade nacional."
Já Lutero Simango, do MDM, disse acreditar que se iniciou uma nova etapa para reinventar o Estado moçambicano rumo a uma descentralização e desconcentração efetiva, que vai exigir no futuro uma revisão da Constituição num ambiente livre de pressões e "inclusivo e da participação real de toda a sociedade moçambicana, sem nenhuma discriminação."
O projeto de revisão pontual da Constituição da República será submetido esta quinta-feira a apreciação na especialidade. Após a sua aprovação, será desencadeado um processo de reforma legal. A proposta para a descentralização foi submetida em 9 de fevereiro pelo chefe de Estado moçambicano, Filipe Nyusi, no âmbito de um acordo com o líder da RENAMO, Afonso Dhlakama, que morreu a 3 de maio devido a complicações de saúde.
Artigo atualizado a 23 de maio de 2018, às 16:38 CET.
Afonso Dhlakama, homem de causas
O percurso de Afonso Dhlakama enquanto político e militar quase se confunde com a história de Moçambique independente. Em nome da democracia não hesitou em entrar numa guerra. Herói para uns, vilão para outros.
Foto: picture-alliance/dpa
Dhlakama, um começo na FRELIMO que não vingou
Afonso Macacho Marceta Dhlakama nasceu a 1 de janeiro de 1953 em Mangunde, povíncia central de Sofala, Moçambique. Entra para a FRELIMO perto da época da independência em 1975, mas não fica muito tempo. Em 1976 sai do partido que governa o país para co-fundar a RNM (Resistência Nacional de Moçambique), um movimento armado, com o apoio da Rodésia do Zimbabué. O objetivo: por fim a ditadura.
Foto: Imago/photothek
Dhlakama: Desde cedo líder da RENAMO
A guerra civil entre a RNM, depois denominada RENAMO, Resistência Nacional de Moçambique, e o Governo começou em 1976. Dhlakama assume a liderança da RNM depois da morte de André Matsangaíssa em combate em 1979. Já era líder quando o primeiro acordo que visava por fim a guerra foi assinado entre o Governo e o regime do apartheid na África do Sul em 1984. Mas o Acordo de Inkomati fracassou.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
AGP: Democracia entra no vocabulário com Dhlakama
Depois de 16 anos de guerra Dhlakama assina com o Governo o Acordo Geral de Paz de Roma em 1992 no contexto do fim da guerra fria e do apartheid na África do Sul. Começa uma nova era para o país, depois de uma guerra que fez perto de um milhão de mortos e milhões de refugiados. A democracia passa então a fazer parte do vocabulário dos moçambicanos, com Dhlakama a auto-intitular-se o seu pai.
Foto: picture-alliance/dpa
O começo das derrotas de Dhlakama nas eleições
Moçambique entra para a era do multipartidarismo e realiza as suas primeiras eleições em 1994. Dhlakama e o seu partido perdem as eleições. As segundas eleições acontecem em 1999 e Dhlakama volta a perder, mas rejeita a derrota. E desde então não parou de perder, facto que provocou descontentamento ao partido de Dhlakama. Reclamava de fraudes e injustiças. E nasceram assim as crises com o Governo.
Foto: Reuters/Grant Lee Neuenburg
Dhlakama: O regresso às matas como estratégia de pressão
O regresso do líder da RENAMO à Serra da Gorongosa em 2013, um dos seus bastiões militares, foi uma mensagem inequívoca ao Governo da FRELIMO. Dhlakama queria mudanças reais, que passavam pelo respeito integral do AGP, principalmente a integração dos militares da RENAMO no exército nacional, e mudança da legislação eleitoral. Assim o país voltou a guerra depois de mais de vinte anos.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Armando Guebuza e Dhlakama em braço de ferro permanente
A 5 de agosto de 2014 o então Presidente Armando Guebuza e Afonso Dhlakama assinaram um cessar-fogo. Estavam criadas as condições para o líder da RENAMO participar nas eleições gerais de outubro de 2014. Dhlakama e o seu partido participam nas eleições e voltam a perder. As crise volta ao rubro e Dhlakama regressa às matas da Gorongosa.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Emboscada contra Afonso Dhlakama
A 12 de setembro de 2015 a caravana em que seguia Afonso Dhlakama foi atacada na província de Manica. Ate hoje não se sabe quem foram os atacantes. A RENAMO considerou a emboscada como uma tentativa de assassinato do seu líder. A comunidade internacional condenou o uso da violência.
Foto: DW/A. Sebastião
Aperto ao cerco contra Afonso Dhlakama
No dia 9 de outubro de 2015, a polícia cercou e invadiu a casa de Afonso Dhlakama na cidade da Beira. As forças governamentais pretendiam desarmar a força a guarda do líder da RENAMO. Os homens da RENAMO que se encontravam no local foram detidos. A população da Beira, bastião da RENAMO, juntou-se diante da casa de Dhlakama manifestando o seu apoio ao líder.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Catueira
Dhlakama e Nyusi: Menos mãos melhores resultados
O líder da RENAMO e o Presidente da República decidiram prescindir de mediadores e passaram a negociar o acordo pessoalmente. Desde então consensos têm sido alcançados, um deles relativo à revisão pontual da Constituição, no âmbito do processo de descentralização em fevereiro de 2018. A aprovação da proposta pelo Parlamento é urgente, pois as próximas eleições de 2018 e 2019 dependem dele.
Foto: Presidencia da Republica de Mocambique
Dhlakama: Não foi a bala que ditou o seu fim
Na manhã de 3 de maio o maior líder da oposição em Moçambique perdeu a vida vítima de doença. Deixa aos seus correlegionários a tarefa de negociar outro ponto controverso na crise com o Governo: a desmilitarização ou integração dos homens armados da RENAMO no exército nacional. Há quase 40 anos à frente da liderança da RENAMO teve de negociar com todos os Presidentes de Moçambique independente.