Deslocados relatam mortes em barcos durante a fuga de Palma
Lusa
5 de maio de 2021
Deslocados dizem que embarcações artesanais saem cheias de pessoas de Palma, mas algumas acabam por não sobreviver à viagem. Nem todos têm condições de pagar pela viagem até às zonas consideradas seguras em Cabo Delgado.
Publicidade
Barcos artesanais cheios de gente que foge do distrito de Palma, norte de Moçambique, estão a chegar a Pemba, capital provincial de Cabo Delgado, numa viagem por mar a que nem todos sobrevivem, segundo testemunhos.
"Fácil não é, porque o caminho também é arriscado", conta Mustafa Amade aos jornalistas, à chegada à praia do bairro de Paquitequete, na terça-feira (04.05), juntamente com dezenas de pessoas deslocadas de Palma que se aventuraram numa embarcação à vela, em madeira.
"Na quinta-feira nós passámos e na sexta chegámos a Matemo", ilha do arquipélago das Quirimbas, ao largo de Cabo Delgado, um dos pontos na dura rota em mar alto, ao sabor do vento, em barcos de madeira sem condições, até Pemba.
"Alguns barcos atrás [do nosso] foram apanhados por malfeitores", relata Amade, referindo que a informação que receberam na ilha apontava para quatro barcos de transportes e seis barcos de pescadores alvo de abordagem.
"Nas ilhas corres riscos. Daqui a uma semana podes nem vir a passar" para Pemba, descreve, relatando que o grupo se deparou com corpos em Matemo, na sexta-feira: "No local, o que é que eu vi? Morreram quatro pessoas".
"Andamos com muito sofrimento"
Issa Ali, outro deslocado, relata as dificuldades: "andamos com muito sofrimento. Mau tempo, fome, com crianças, vomitar no mar", tudo junto num cenário em que reina o medo.
Publicidade
A viagem não está ao alcance de todos porque, para entrar no barco, são cobrados valores "que começam em cinco, quatro [mil meticais]" para chegar às ilhas, como Matemo.
De lá, é preciso pagar outros 300 a 600 meticais para chegar a Pemba.
Mansabo Rachide, deslocado, dá conta de um relato sobre ataques a embarcações em fuga, com outros detalhes: fala de 10 "al-shababs", numa alusão aos rebeldes, com armas e que "levaram muitas coisas: peixe, comida e duas lanchas de pessoas que estavam a sair de Palma".
"Não sei para onde eu vou. Esta viagem, não a planifiquei. Sai por emergência", refere Musatafa Amade
"Os ataques continuam", relata, dizendo que "depois de eles [grupos rebeldes] saírem", após a incursão de 24 de março, "estão a voltar" à vila de Palma, numa alusão a incidentes, parte dos quais confirmados na última semana pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS).
"A cada dia podem degolar três a quatro pessoas e queimar casas", descreveu Amade, para justificar porque decidiu fugir de Palma.
População receia pela sua vida
Sem referência a vítimas, as FDS confirmaram na última semana que desconhecidos, provavelmente pertencentes ao grupo que protagonizou o ataque de 24 de março, incendiaram casas, mas reiterando controlar a área.
Só que a população receia pela sua vida."O que queremos é segurança e voltar para casa. É muito difícil começar do zero", refere Musatafa Amade.
"É isso que nos faz sair de vez", acrescenta Issa Ali, que lamenta a situação da última semana, de desconhecidos "a queimar casas, no fundo da aldeia".
"Todos os dias aquilo vem [a violência] e nós não conseguimos ficar naquela situação", conclui.
Autoridades, organizações humanitárias e governamentais estão a acompanhar a chegada de embarcações com deslocados a Pemba, nomeadamente na praia do Paquitequete.
O ataque a Palma provocou dezenas de mortos e feridos, num balanço ainda em curso.
As autoridades moçambicanas recuperaram o controlo da vila, mas o ataque levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do projeto de gás que tinha início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expectativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década.
Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo 'jihadista' Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes segundo o projeto de registo de conflitos ACLED e 714.000 deslocados de acordo com o Governo moçambicano.
Terrorismo em Cabo Delgado: As marcas da destruição e a crise humanitária
Edifícios vandalizados, presença de militares nas ruas e promessas de soluções por parte de políticos contrastam com a tentativa das populações de levar a vida adiante.
Foto: Roberto Paquete/DW
Infraestruturas vandalizadas
O conflito armado em Cabo Delgado deixou um número de infraestruturas destruídas na província nortenha de Moçambique. Em Macomia, os insurgentes não pouparam nem a Direção Nacional de Identificação Civil. Os danos no prédio do órgão deixaram milhares de pessoas sem documentos. E carro da polícia incendiado.
Foto: Roberto Paquete/DW
Feridas abertas até na sede da Polícia
O edifício da Polícia da República de Moçambique (PRM) em Macomia ainda carrega as marcas de um ataque em 2020. O tanzaniano Abu Yasir Hassan – também conhecido como Yasser Hassan e Abur Qasim - é reconhecido pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos e pelo Governo moçambicano como líder do Estado Islâmico em Cabo Delgado. Não está claro se o grupo é responsável pelos ataques na província.
Foto: Roberto Paquete/DW
"Eliminar todo o tipo de ameaça"
Joaquim Rivas Mangrasse (à esquerda) foi empossado chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas a 16 e março. "É missão das Forças Armadas eliminar todo o tipo de ameaça à nossa soberania, incluindo o terrorismo e os seus mentores, que não devem ter sossego e devem se arrepender de ter ousado atacar Moçambique", declarou o Presidente Filipe Nyusi (centro) na cerimónia de posse, em Maputo.
Foto: Roberto Paquete/DW
Missões constantes para conter os terroristas
Soldados das Forças Armadas de Defesa de Moçambique preparam-se para mais uma missão contra terroristas em Palma. A vila foi alvo de ataques, esta quarta-feira (24.03), segundo fontes ouvidas pela agência Lusa e segundo a imprensa moçambicana. Neste mesmo dia, as autoridades moçambicanas e a petrolífera Total anunciaram, para abril, o retorno das obras do projeto de gás, suspensas desde dezembro.
Foto: Roberto Paquete/DW
Defender o gás natural da península de Afungi
A península de Afungi, distrito de Palma, foi designada como área de segurança especial pelo Governo de Moçambique para proteger o projeto de exploração de gás da Total. O controlo é feito pelas forças de segurança designadas pelos ministérios da Defesa e do Interior. Esta quinta-feira (25.03), o Ministério da Defesa confirmou o ataque junto ao projeto de gás, na quarta-feira (24.03).
Foto: Roberto Paquete/DW
Proteger os deslocados
Soldados das FADM protegem um campo para os desolocados internos na vila de Palma. A violência armada está a provocar uma crise humanitária que já resultou em quase 700 mil deslocados e mais de duas mil mortes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Apoiar os deslocados
De acordo com as agências humanitárias, mais de 90% dos deslocados estão hospedados "com familiares e amigos". Muitos refugiaram-se em Palma. Com as estradas bloqueadas pelos insurgentes em fevereiro e março deste ano, faltaram alimentos. A ajuda chegou de navio.
Foto: Roberto Paquete/DW
Defender a própria comunidade
Soldados das Forças Armadas de Defesa de Moçambqiue estão presentes também no distrito de Mueda. Entretanto, cansados de sofrer nas mãos dos teroristas, antigos militares decidiram proteger eles mesmos a sua comunidade e formaram uma milícia chamada "força local".
Foto: Roberto Paquete/DW
Levar a vida adiante
No mercado no centro da vida de Palma, a população tenta seguir com a vida normal quando a situação está calma. Apesar da ameaça constante imposta pela possibilidade de um novo ataque, quando "a poeira abaixa", a normalidade parece regressar pelo menos momentaneamente...
Foto: Roberto Paquete/DW
Aprender a ter esperança com as crianças
Apesar de todo o caos que se instalou um pouco por todo o lado em Cabo Delgado, a esperança por um vida normal continua entre as poulações. Na imagem, crianças de famílias deslocadas que deixaram as suas casas, fugindo dos terroristas, e foram para a cidade de Pemba. Vivem no bairro de Paquitequete e sonham com um futuro próspero, sem ter de depender da ajuda humanitária e longe da violência.