Angolanos a viver em Portugal aplaudem sinais de mudança em Angola, mas pedem melhorias reais, temendo continuidade de "velhas práticas".
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A diáspora angolana em Portugal segue com atenção as recentes mudanças no país: a eleição de João Lourenço como Presidente do MPLA e a despedida do ex-chefe de Estado José Eduardo dos Santos da política ativa geraram um aceso debate nas redes sociais. Houve aplausos ao discurso do novo presidente do partido - que promete combater a corrupção, o nepotismo e a bajulação -, mas mantém-se algum ceticismo.
A Plataforma de Reflexão sobre Angola está reticente: não acredita que a nova liderança do MPLA signifique o fim das velhas práticas que fundaram a burguesia nacional. "Falar do fim do nepotismo, da corrupção, da incompetência e da melhor distribuição dos recursos e a sua boa utilização significa que é preciso repensar todos os atores atuais para um novo grupo", diz Manuel Dias dos Santos, do núcleo de reflexão. "Não basta o discurso do chefe de Estado para a mentalidade mudar. Ou seja, a mentalidade vai continuar a mesma", considera.
Também o ator Daniel Martinho quer ver mais medidas antes de falar num novo ciclo em Angola, embora admita que a governação "está no bom caminho".
"É preciso que umas coisas sejam enterradas, outras sejam revistas e corrigidas no que concerne aos aspetos políticos, económicos e sociais, para então considerarmos um novo ciclo”, considera. "Pode ser que seja uma continuação e não é isso que queremos. Em todo o caso, vamos dar o benefício da dúvida para dizer que [João Lourenço] está no bom caminho".
Daniel Martinho lembra que os angolanos na diáspora estão expectantes e sentem o pulsar da situação política, económica e social do país. Os sinais de mudança transmitidos antes pelo atual Presidente da República e as metas por ele apontadas logo após a tomada de posse, em 2017, e agora reafirmadas no Congresso do MPLA, devem traduzir-se em soluções e melhorias, com políticas e programas que correspondam às expetativas e anseios dos jovens.
"Penso que os jovens inadaptados estão cansados de ver a coisa correr do jeito que corre. É preciso que as coisas se tornem mais palpáveis. É preciso que se mude", diz o ator.
Medidas reais
Diáspora angolana espera novo ciclo político
Concretamente, Daniel Martinho pede a criação de condições legislativas que permitam aos angolanos no exterior votarem nas eleições angolanas. O partido no poder tem responsabilidades nesta matéria, por ser a maioria no Parlamento: "Se não queremos correr o risco de vermos um número de ausentes ou votos nulos acentuados, é necessário então que se faça a coisa com mais seriedade. Se os nossos políticos não vão cumprir o seu trabalho [de servidores do] público, o que vai acontecer é que vão anular-se de ter de ir votar ou de ter de ir prestar o seu [dever] cívico".
A propósito da visita a Angola do primeiro-ministro português, António Costa, prevista para a próxima semana, Daniel Martinho pede aos governantes dos dois países medidas que tornem mais acessível e célere a política de concessão de vistos na base da reciprocidade, permitindo um maior intercâmbio entre os dois países: "Entendam-se, porque nós os povos [angolano e português] damo-nos bem".
Manuel Dias dos Santos, do núcleo da Plataforma de Reflexão sobre Angola, deixa um alerta: o discurso não basta, importante é pô-lo em prática. "Isso significa serem eles os primeiros a colocarem todos os recursos que obtiveram de forma ilícita e ilegal à disposição do Estado angolano, investindo justamente na qualidade de vida, criando oportunidade de as pessoas, com o seu trabalho, viverem em dignidade", remata.
O novo ciclo em Angola poderá também constar da obra do escritor Ondjaki, que, de passagem este fim de semana por Lisboa, afirmou num debate que "literatura é política e deve ser interventiva".
Bairro da Jamaica na margem sul de Lisboa: A prolongada esperança
A Urbanização do Vale de Chícharos no Seixal, concelho do distrito de Setúbal (Grande Lisboa), acolhe, na sua maioria, imigrantes dos países africanos de língua portuguesa. Há quem viva no bairro há mais de 20 anos.
Foto: J. Carlos
Décadas à espera de realojamento
Os prédios inacabados, propriedade da Urbangol, uma sociedade sedeada num paraíso fiscal com dívidas ao fisco, foram ocupados por pessoas de baixa renda que não tinham condições para comprar uma casa. Aguardam, ao longo destes anos, pela promessa de realojamento por parte da autarquia local.
Foto: J. Carlos
Arte e desabafo por um bairro melhor
Por uma das entradas do Jamaica, os visitantes são recebidos por estes murais pintados na parede que cerca a instalação de transformadores da EDP, Energias de Portugal. As pinturas expõem os sentimentos de mudança e a visão do mundo por parte dos artistas que aspiram viver em um bairro melhor.
Foto: J. Carlos
Os ídolos Bob Marley e Che Guevara
O lendário músico jamaicano Bob Marley ou o líder guerrilheiro argentino-cubano Che Guevara são uma espécie de ídolos para os jovens artistas autores destas pinturas. Ao longo da parede, que funciona como uma tela, veem-se outros motivos, incluindo a reprodução de um bairro típico imaginário em África.
Foto: J. Carlos
Falta de água e de luz
Nos cafés ou em outro ponto de encontro e de convívio, os moradores acabam por falar e questionar sempre sobre os inúmeros problemas com que se deparam no dia-a-dia. A falta de água e de saneamento básico ou os cortes de luz pela empresa fornecedora quando não são pagas as faturas coletivas constituem uma dor de cabeça diária.
Foto: J. Carlos
Mas, na hora de matar a fome…
Enquanto não vem uma solução para o realojamento, a vida não para no Jamaica. Aos fins de semana, a música ajuda a acalentar os problemas. Os grelhados à moda dos países de origem, preparados neste caso pela são-tomense Vitória Silva, servem para matar a fome depois de um dia de trabalho árduo.
Foto: J. Carlos
… Pratos típicos juntam amigos
Percorrendo o território adjacente, encontram-se vários espaços anexados como este, adaptados para café e ou restaurantes, são uma das fontes de rendimento familiar. Os pratos típicos de África, sobretudo à base de peixe e banana, recheiam as mesas dos clientes provenientes de sítios diversos e servem de pretexto para reunir amigos.
Foto: J. Carlos
Cultivar para render
Em uma pequena parcela do terreno à volta, há moradores com alguma experiência agrícola que improvisaram hortas com variedades de hortaliças para consumo próprio. Plantam couves, alfaces, tomates, cebolas, alhos e batatas, entre outros produtos que ajudam a aliviar as despesas com a alimentação.
Foto: J. Carlos
Produzir para sobreviver
Também com o mesmo objetivo, a criação de galinhas reforça a dieta alimentar caseira. Para alguns dos moradores desempregados ou não, esta é uma das formas para suprir as muitas dificuldades de sobrevivência quando é baixo o rendimento familiar.
Foto: J. Carlos
Desemprego, droga e prostituição inquietam
O desemprego é um dos males que inquietam jovens mães como Vanusa e Aurora Coxi. Dizem que os habitantes são, de certo modo, discriminados quando procuram emprego pela fama desmerecida de aqui morarem. Isso leva muitos jovens a seguir por caminhos impróprios, do roubo, do tráfico de droga ou da prostituição. Ambas têm um sonho: acabar a universidade, interrompida por dificuldades diversas.
Foto: J. Carlos
Inundação e humidade
A estes problemas juntam-se as condições de habitabilidade nos prédios, que afetam a maioria das mais de 800 pessoas aqui residentes. Júlio Gomes, guineense que mora num anexo improvisado na parte traseira de um dos prédios, é afetado pela inundação quando chove ou quando rompe a canalização do sistema de esgotos do vizinho do andar de cima.
Foto: J. Carlos
Acesso à tarifa social de eletricidade
Os moradores estão em conflito com a empresa que fornece eletricidade (EDP), porque o critério de cobrança não é o mais adequado. É a associação do bairro que recebe o dinheiro dos consumos mensais e paga as faturas únicas por lote, consoante a leitura no contador colocado em cada prédio. Mas há quem não pague. Os clientes reclamam por não beneficiarem de tarifa social.
Foto: J. Carlos
Sede a precisar de reabilitação
Na sede da Associação para o Desenvolvimento Social da Urbanização de Vale de Chícharos, onde vive uma família, as inundações também constituem um incómodo quando chove. Aqui têm lugar as reuniões para discutir os problemas que afetam os residentes, entre os quais o realojamento. Reabilitar o espaço, onde também funcionam aulas de alfabetização, é uma solução em stand by por falta de recursos.
Foto: J. Carlos
Parque infantil inseguro
Ao lado da sede está um pequeno parque infantil, igualmente sem as condições mínimas de segurança para as crianças brincarem. Os poucos equipamentos nele existentes estão em mau estado de conservação e utilização. Este é, entretanto, um dos poucos espaços de lazer que dispõem para descarregar energia e preencher o tempo.
Foto: J. Carlos
Ação social imprescindível
A CRIAR-T – Associação de Solidariedade tem prestado serviço útil à comunidade, já lá vão mais de 15 anos. As suas várias valências permitem, além de apoio social, acolher crianças enquanto os pais vão trabalhar. Porque «é um perigo elas andarem pelo bairro a brincar», diz Dirce Noronha, presidente da Associação para o Desenvolvimento de Vale de Chícharos.