Dino D'Santiago é mais uma voz nova de Cabo Verde que corre os palcos do mundo a grande velocidade. O retorno às suas origens foi determinante para o caminho vistoso que hoje trilha no mundo da música.
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No Afrika Festival em Würzburg, o maior festival de música africana da Alemanha, que aconteceu em maio, a DW África aproveitou para ter dois dedos de conversa com Dino D'Santiago. O jovem músico foi antes buscar a sua guitarra aos bastidores para nos brindar com umas músicas durante a conversa. A transbordar boa disposição, Dino contou-nos como o rapaz que vive em Portugal decidiu voltar às suas origens cabo-verdianas:
DW África: Sabemos que teve de fazer um regresso às suas origens, não para começar, mas para dar o pulo que o Dino deu. Quer nos falar um pouco sobre isso?
Dino de Santiago (DS): Comecei com música da igreja e quando o Hip-Hop começou a desenvolver-se em Portugal, no sul pelo menos, toda a gente precisava daquele refrão e normalmente quem cantava eram os rapazes da igreja. Então fui convidado a entrar nesse universo por amigos meus e a partir daí a minha vida foi dando um pulo sempre na área do Soul e Funk. E quando o meu pai convida-me a ir com ele para Cabo Verde, isso mudou a minha vida por completo. Foi desde eles rezarem o terço, em Portugal eu sempre adormecia no terço, depois é que compreendi que as crianças lá [em Cabo Verde] passam o testemunho, e isso mexeu muito comigo e então comecei a escrever, naturalmente em crioulo por estar em Cabo Verde. Comecei a desenvolver as minhas histórias e num espaço de quinze dias tinha dez músicas e decidi registar isso. E quando comecei a cantar juntei-me a músicos maravilhosos e a editora Lusafrica que lançou a Cesária Évora para o mundo, então tudo se fundiu numa simbiose perfeita. E quando dei por mim já estava a fazer palcos na Coreia do Sul, Estados Unidos da América, em Paris, Alemanha por diversas vezes, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe... Sinto que foi mais Cabo Verde a abrigar-me do que eu a transportar Cabo Verde.DW África: E como foi esse pulo do Hip-Hop para as suas origens cabo-verdianas?
DS: Parece um pulo muito distante, mas depois comecei a ver que não é. Já Bulimundo e os Tubarões faziam muita música de intervenção, era a forma que usavam para exprimir o descontentamento, a pobreza e a saudade. E o Hip-Hop é muito um instrumento da palavra, da insatisfação do povo e da vontade de ver o povo ir para a frente. Depois o Hip-Hop transformou-se mais comercial para vender. A grande diferença é que eu saí do português para o crioulo. E incrivelmente descobri a minha voz a cantar em crioulo.
DW África: E a sua ida a Cabo Verde em 2010 foi a primeira?
DS: Não, a primeira foi em 1989, mas foi tão dramática que fiquei vinte e tal anos sem regressar. Fui para o interior de Santiago onde não havia luz, água potável e para irmos buscar água andávamos mais de um quilómetro naquele chão [agreste], estragaram-se as sandálias todas, ir a igreja no cimo de uma montanha, e tinha de se ir todos os domingos, e se para um adulto já é difícil para uma criança parece uma eternidade. Então disse Cabo Verde nunca mais, fiquei com um trauma, mas quando regressei vi o quão ignorante estava, era uma criança. E hoje estou muito feliz carregando essa bandeira.
DW África: E com que frequência tens ido a Cabo Verde desde 2010?
ONLINE Entrev. Dino I - MP3-Mono
DS: No mínimo cinco a sete vezes por ano, às vezes acho que passo mais tempo em Cabo Verde do que na Europa. Mas foi aquela fonte de água viva, fonte de inspiração e numa liberdade de expressão e o abraço que sinto do povo cabo-verdiano quando chego é uma coisa surreal.
DW África: A música de Cabo Verde foi celebrizada por figuras como Cesária Évora, Tito Paris ou mais recentemente a Lura. Sente algum receio ou uma espécie de responsabilidade por se juntar a estas estrelas?
DS: Acho que fui um afortunado desde o início. A primeira pessoa que me levou para um palco foi o Tito Paris para tocar no dia da independência de Cabo Verde. Conheceu-me e disse quero que venhas cantar. A generosidade dele foi o meu primeiro ensinamento, decidi que quando começasse a tocar e aparecessem os mais novos a começar que iria abrir o meu palco para eles, então acho que comecei logo bem. A Lura também é grande amiga, já tocamos juntos em Cabo Verde. A Cesária ainda era viva quando assinei com a editora [dela], mas faleceu sem que a conhecesse, mas felizmente tenho muitos amigos que tocaram com ela, como hoje com o Cau Paris que foi baterista dela durante muitos anos, que me vão contando as histórias e sinto que vou bebendo da Cesária assim. E sempre que passo por algum palco canto Cesária, sinto que ela foi uma grande porta para todos nós.
Tarrafal: O Campo da Morte Lenta
O Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do cabo-verdiano Pedro Martins, "um sítio planificado para fazer sofrer as pessoas". Os presos políticos que por aí passaram recordam-no como "Campo da Morte Lenta".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Bastião de tortura
Construído numa das regiões mais agrestes de Cabo Verde, o Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do então preso político cabo-verdiano Pedro Martins, “um sítio planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas”. Para os detidos que por aí passaram, o local ficará para sempre nas suas memórias como o “Campo da Morte Lenta" devido ao regime a que eram submetidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Colónia para desterrados
Situada no concelho do Tarrafal, na ilha cabo-verdiana de Santiago, começou por chamar-se Colónia Penal. Entre 1936 e 1954 recebeu presos políticos portugueses desterrados pelo Governo do Estado Novo. Reabriu em 1961 para aí serem internados militantes anti-regime das colónias portuguesas de Angola, Cabo Verde e Guiné.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Inspirado nos campos nazis
O modo de funcionamento do Tarrafal e a forma como eram tratados os presos eram semelhantes aos de outros campos de concentração existentes no mundo. Castigos, tortura, trabalhos forçados, má alimentação e falta de assistência médica faziam parte do dia-a-dia dos detidos. A maior parte das detenções era feita de forma arbitrária.
Foto: DW/Madalena Sampaio
“Não estou aqui para curar”
Doenças como o paludismo e a biliose ceifaram muitas vidas no Tarrafal. O pequeno posto de socorro aí existente, dividido em duas salas, também servia de casa mortuária. “Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”, afirmava Esmeraldo Pais Prata, o médico do campo que tinha a alcunha de “Tralheira”. Gostava de assistir aos espancamentos e a dor dos presos deixava-o indiferente.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Ala dos presos cabo-verdianos
Os primeiros presos políticos de Cabo Verde foram internados no Tarrafal em 1968. O espaço onde estavam detidos era de tal modo exíguo que se tinham de acomodar "como sardinhas enlatadas”, recorda Pedro Martins, que foi detido quando tinha apenas 19 anos. Ao fundo da sala ficava a casa-de-banho, onde através de um transístor clandestino escutavam várias emissoras. Era a famosa "rádio retrete".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Sobreviver à alimentação
Era nesta cozinha que eram preparadas as refeições dos presos. Segundo os detidos, a alimentação era “péssima” e muito pouco diversificada. “Cachupa com uns vestígios de atum era-nos servida diariamente”, descreve Pedro Martins no livro “Testemunho de um Combatente”. Quando se recusavam a comer peixe estragado, “que nem os cães seriam capazes de comer”, o diretor mandava cortar-lhes as refeições.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Quotidiano duro
Nos dias de faxina, os detidos eram obrigados a carregar água em latas suspensas por um fio de arame. E também tinham de carregar a água para lavar as suas roupas para as tinas de betão armado. “Às vezes escasseava a água e tínhamos que a racionar”, lê-se no livro “Testemunho de um Combatente”. Nos meses mais quentes, a temperatura nas celas facilmente ultrapassava os 40 graus.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Testemunhos de sobreviventes
Na antiga cela dos presos políticos angolanos, uma exposição dá a conhecer os rostos de quem sobreviveu ao “Campo da Morte Lenta”. E testemunhos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. “A ideia principal era: vim para aqui e não sei se sairei daqui”, lê-se no poster do angolano Vicente Pinto de Andrade, que esteve aqui encarcerado entre 1970 e 1974, juntamente com o seu irmão Justino Pinto de Andrade.
Foto: DW/Madalena Sampaio
A temida "Frigideira"
Também conhecida como “câmara de torturas”, a “Frigideira” era uma caixa rectangular em cimento armado, dividida ao meio, com proporções para conter dois homens. Tinha uma porta em chapa de ferro com cinco pequenos furos na base, em cada divisória, e uma pequena grade de ferro no topo esquerdo. A temperatura aqui podia chegar aos 60 graus, segundo os detidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Tortura na “Holandinha”
No lugar da “Frigideira” foi construída outra cela disciplinar, "pouco mais alta que um homem em pé", com uma pequena janela de grades. Segundo os presos, era um “autêntico forno” onde não tinham capacidade de movimentos. A este cubículo de cimento, que ficava dentro de um espaço anexo à cozinha, deu-se o nome de “Holandinha”, numa referência ao país para onde partiam muitos cabo-verdianos.
Foto: DW/M. Sampaio
Comunicação entre presos
A muito custo, os nacionalistas africanos das colónias conseguiam, por vezes, comunicar entre si. Com a ajuda de alguns guardas “infiltrados”, os presos cabo-verdianos enviavam bilhetes aos angolanos que estavam do outro lado do campo, a quem também procuravam aliviar o sofrimento quando estes eram enviados para a “Holandinha”. Tudo feito sob uma “pressão enorme”, recordam hoje os presos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Estudar atrás das grades
No recinto existia também esta biblioteca, cuja instalação foi autorizada ainda na década de 40. Muitos camponeses aprenderam a ler e a escrever no Tarrafal. Segundo o cabo-verdiano Pedro Martins, quase todos os detidos na sua ala passaram a estudar e organizavam-se até horários de estudo. Os presos com mais instrução chegaram a dar formação política aos restantes companheiros.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Vítimas mortais
A detenção no Tarrafal custou a vida a 36 presos políticos: 32 portugueses, dois angolanos e dois guineenses. Entre as vítimas mortais de origem lusa inclui-se Bento Gonçalves, então secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP). Entretanto, vários outros morreram já depois da sua libertação, em consequência dos maus tratos e das condições de vida no campo de concentração.
Foto: DW/Madalena Sampaio
O dia da libertação
Foi por aqui que saíram os últimos presos do Tarrafal, no dia 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal. “O Tarrafal era uma prisão para o resto da vida. Se não fosse o 25 de Abril iríamos morrer todos lá”, afirmou o angolano Joel Pessoa. Nessa altura, a libertação dos presos políticos era uma das principais exigências da população.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Espaço meio abandonado
O campo do Tarrafal só foi definitivamente extinto em 1975. Acabaria por ser transformado em Museu da Resistência, em 2009. Atualmente, o espaço-símbolo da resistência anticolonialista encontra-se em estado de semi-abandono e sem grandes cuidados. Entretanto, o Governo cabo-verdiano constituiu uma comissão para preparar a candidatura do campo a Património Mundial da UNESCO.