O Brasil elege este domingo (02.10) o seu próximo Presidente, numa das eleições mais polarizadas da sua história. Africanos no país pedem um Governo que olhe para o continente e dê mais representatividade aos migrantes.
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Em 2012, o historiador moçambicano João Adriano Mucuapera João deixou Maputo em direção a São Paulo, a maior cidade brasileira. Lá, encontrou uma vida cheia de oportunidades. Hoje, a situação é diferente.
"Vou falar num português bem claro: havia fartura, tanto de trabalho como de comida. A pessoa mudava de emprego de um dia para o outro. Hoje você não encontra isso", relata o historiador moçambicano de 42 anos, que atualmente estuda ciências humanas na Universidade de São Paulo (USP).
O professor angolano Isidro Sanene, oriundo da província de Benguela, concorda. Diz que tudo era mais fácil quando chegou a São Paulo, há 12 anos, na condição de refugiado.
"Lembro-me que quando cheguei eu tinha 30 dólares. Com 20 reais eu conseguia comer no Bom Prato [restaurante popular] durante 20 dias, a refeição era 1 real. As coisas subiram muito de preço", conta Sanene, que conseguiu estudar no Brasil e atualmente, aos 34 anos, dá aulas de redação para alunos do ensino médio numa escola privada, além de trabalhar como ator e produtor cultural.
"O Brasil não merece isto que está a viver"
O alto custo de vida e a falta de oportunidades são algumas preocupações dos migrantes africanos que esperam melhorias no Brasil após as eleições gerais do próximo domingo, 2 de outubro.
Na última década, uma crise política, económica e social tem tirado o país da sua rota de crescimento. Segundo dados do "Mapa da Nova Pobreza", da Fundação Getúlio Vargas (FGV), divulgados em julho, quase 10 milhões de brasileiros passaram a viver com menos de 497 reais mensais (cerca de 95 euros) entre os anos e 2019 a 2021 – valor que é menos de metade do salário mínimo nacional.
O moçambicano João Adriano diz que a situação "piorou muito" com a pandemia de Covid-19. "Há dez anos, quando eu cheguei ao país, eu ia à Praça da Sé como um ponto turístico, hoje é um ponto cheio de barracas de pessoas que não tiveram condições de pagar o aluguer e foram morar no centro de São Paulo, porque lá a sociedade civil ajuda-os com um prato de comida, com roupa. O Brasil não merece isto que está a viver", lamenta o historiador e também ativista cultural.
Um retrato da desigualdade
Isidro Sanene lembra que muitos migrantes africanos são autónomos e, por isso, enfrentaram dificuldades económicas ainda maiores por causa da pandemia. "O aluguer, por exemplo, antes era mais tranquilo. O acesso à comida também. E hoje tudo está num valor extremamente absurdo e muitas vezes nós, como migrantes, não temos condições de nos sustentar".
A estudante de direito da República Democrática do Congo (RDC) Rosy Kamayi, de 23 anos, vive há quatro anos na capital do estado do Paraná, no sul do país, e também sofre com a atual situação económica brasileira. "Aqui em Curitiba, para um estrangeiro conseguir um trabalho, não é fácil", diz.
Com um estágio no Ministério Público do Trabalho, Rosy tenta sustentar-se e ainda ajudar a família que deixou em Kinshasa. Mas, como disse, "não é fácil".
"Espero que o próximo Governo traga um equilíbrio económico e tente baixar o nível da inflação, porque nós, como estrangeiros, podemos ganhar dinheiro, mas vamos comprar as coisas e ficamos sem [dinheiro], já que estamos aqui sem família", diz a jovem congolesa que conseguiu uma bolsa para estudar na Universidade Federal do Paraná.
Lula da Silva novamente no poder?
O Brasil tenta regressar à rota de desenvolvimento, numa das eleições mais polarizadas da sua história: de um lado, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), que governou de 2003 a 2011, lidera as intenções de voto e pode vencer já na primeira volta; do outro, o atual Presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), que procura a reeleição, mas está em segundo lugar nas pesquisas.
Há mais nove candidatos na disputa, mas sem hipóteses de vencer, de acordo com as sondagens mais recentes.
Em 2017, Lula da Silva foi condenado por corrupção na Operação Lava Jato, ficou preso durante 580 dias, mas foi libertado em novembro de 2019, depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter anulado a condenação em segunda instância.
Os migrantes africanos no Brasil recordam as fortes relações que o candidato do PT construiu em África. O angolano Isidro Sanene diz que "quando o Presidente Lula chegou ao poder, foi um dos únicos Presidentes a trazer mais essa questão de África no âmbito da cultura e educação".
"Temos a lei [aprovada no primeiro mandato de Lula, em 2003,] que obriga o ensino da história africana no Brasil", exemplifica o professor.
Para o moçambicano João Adriano, "o Brasil hoje tem conhecimento do continente africano [devido ao] Governo do Presidente Lula, porque ele fortaleceu o intercâmbio, principalmente académico e industrial".
"No Governo do Lula, a gente teve um acordo de exploração de minas. Em Moçambique não temos muitas pessoas formadas em mineração e o Brasil tem esse mercado desde tempos remotos. Então, foi um acordo de formação dos nossos [profissionais]", lembra-se o historiador.
Diálogo sobre as necessidades dos migrantes
Boas relações com África, mas também diálogo sobre as necessidades dos migrantes no Brasil. É o que espera do próximo Governo brasileiro a empreendedora social guineense Benazira Djoco, que chegou a São Paulo em 2003, quando tinha 16 anos.
"Tem de haver uma maneira de ter representantes migrantes compondo o novo plano diretor de quem ganhar a eleição. Eu não me sinto representada por um brasileiro escolhido para representar esta pauta migratória", afirma.
A guineense que trabalha com a causa migratória no Brasil lembra que pouco se ouve falar do assunto nos debates dos candidatos à Presidência da República.
"Eles só nos conhecem quando há um acidente bárbaro"
Benazira recorda o assassinato de Moïse Kabagambe, um cidadão congolês morto brutalmente em janeiro deste ano na orla do Rio de Janeiro, cartão postal do Brasil.
"Morreu o nosso irmão Moïse de uma maneira bárbara. Todo o mundo ficou comovido, até eles que estão se candidatando [à Presidência] se pronunciaram, mas chegou o momento de construir um plano diretor para o mandato e não colocaram essa questão. Como é que vão consciencializar a sociedade? E mesmo sabendo que há migrantes com título eleitoral, e no dia 2 vão exercer a sua cidadania, não há representatividade. Eles só nos conhecem quando há um acidente bárbaro", critica a empreendedora social guineense, que pede uma política mais ampla de acolhimento para os migrantes.
"A cada dia que passa as dificuldades têm aumentado. O Brasil abre a porta para imigrantes e refugiados, que bom, mas não há um mecanismo para receber essas pessoas. E este é um dos problemas que nos traz essa questão da xenofobia, além do racismo estrutural que já está enraizado no sistema brasileiro", completa.
Um Governo que possa olhar para África
O moçambicano João Adriano Mucuapera João lança um apelo a favor da democracia. "Tenho que falar para os amigos brasileiros que vão votar: votem com consciência, porque a pessoa que está no poder fala abertamente que pode não aceitar os resultados das eleições. E eu temo, sim, porque é um Governo que não dá abertura aos migrantes", diz o historiador, fazendo referência a Jair Bolsonaro.
O professor angolano Isidro Sanene diz que os migrantes africanos esperam um "Governo que possa olhar para África".
"O Brasil encontra-se nesta desigualdade social justamente por causa da política da negação. Espero que o próximo Presidente não ignore essas pautas importantes do acolhimento [dos migrantes], do reconhecimento, para o brasileiro olhar no espelho e entender que este é o caminho", afirma Sanene.
Lula da Silva: de Presidente a presidiário
Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro operário a tornar-se Presidente do Brasil. Relembramos a ascenção e a queda deste político brasileiro, condenado a 12 anos de prisão por corrupção no âmbito da Operação Lava Jato.
Foto: Reuters/N. Doce
1975: Lula, o sindicalista
Em 1975, Lula foi eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, duas cidades da zona do "ABC paulista" nos arredores de São Paulo, maior cidade da América do Sul. Lula ganhou projeção nacional como líder de uma série de greves no final da década. Em 1980, foi preso e processado com base na Lei de Segurança Nacional após uma paralisação que durou 41 dias.
Foto: Instituto Lula
1980: Fundador do Partido dos Trabalhadores
A 10 de fevereiro de 1980, Lula fundou o Partido dos Trabalhadores (PT) com apoio de inteletuais e sindicalistas. Em maio do mesmo ano, ao sair da prisão, foi eleito o primeiro presidente do partido. Mais tarde, o PT tornou-se o partido mais influente do Brasil. Em 1982, Lula concorreu sem sucesso ao cargo de governador do estado de São Paulo. Porém, em 1986, foi eleito deputado federal.
Foto: Getty Images/AFP/C. Petroli
1989: Primeira campanha presidencial
O PT lançou a candidatura de Lula nas primeiras eleições presidenciais diretas do Brasil após o fim do regime militar. Com uma imagem de operário e um discurso de esquerda, Lula provocou temor em muitos setores da economia, que se alinharam com o candidato da direita, Fernando Collor de Mello. Lula foi derrotado no segundo turno, depois de acusações de manipulação da imprensa em favor de Collor.
Foto: picture-alliance/dpa/R. Gostoli
1994: Segunda campanha presidencial
Após denúncias de irregularidades, Lula lançou, em 1991, o movimento "Fora Collor". Um ano mais tarde, Collor foi deposto pelo Congresso como Presidente e Itamar Franco assumiu o cargo. Em 1994, Lula concorreu novamente à Presidência, mas foi derrotado na primeira volta por Fernando Henrique Cardoso, que como ministro das Finanças tinha conseguido diminuir a inflação através do "Plano Real".
Foto: Getty Images/AFP/A. Scorza
1998: Terceira campanha presidencial
Em 1998, Lula sofreu uma das suas piores derrotas eleitorais. O petista teve como candidato a vice-Presidente Leonel Brizola, do partido PDT, um dos seus rivais na eleição de 1989, com quem disputava a hegemonia na esquerda brasileira. A fórmula não deu certo. Lula obteve só 31% dos votos; nem sequer chegou à segunda volta. O então Presidente Fernando Henrique Cardoso do PSDB foi reeleito com 53%.
Foto: picture alliance/AP Photo/R. Gostoli
2002: Quarta campanha presidencial
O eterno candidato assumiu finalmente a Presidência após uma vitória nas eleições de 2002. Lula foi eleito com 61% dos votos na segunda volta e assumiu o poder em janeiro de 2003. Na campanha, o PT conseguiu vender uma imagem mais moderada do petista – simbolizada no slogan "Lulinha, paz e amor" – com o objetivo de acalmar os mercados financeiros e ampliar o eleitorado do partido.
Foto: O. Kissner/AFP/Getty Images
2005: O escândalo do mensalão
Em 2005, o Governo Lula foi atingido em cheio pelo escândalo de compra de votos de deputados, o "mensalão". Mesmo assim, Lula sobreviveu à crise. Outros, como o ministro José Dirceu, uma das figuras fortes do seu Governo, caíram em desgraça. No início, Lula afirmou que assessores o haviam "apunhalado", mas depois mudou o discurso e disse que o caso era uma invenção da oposição e da imprensa.
Foto: picture alliance / dpa / picture-alliance
2006: Quinta campanha presidencial
Em 2006, Luiz Inácio Lula da Silva é reeleito na segunda volta com mais de 60% dos votos válidos e venceu contra Geraldo Alckmin do PSDB. Apesar do "mensalão", chave para a vitória foram os programas sociais como a "Bolsa Família", que garantiu um rendimento mínimo a brasileiros pobres. Quase 28 milhões de brasileiros saíram da pobreza nos oito anos do Governo Lula, segundo um balanço de 2010.
Foto: Vanderlei Almeida/AFP/Getty Images
2006: Grande popularidade no nordeste
Nas eleições de 2006, Lula ganhou principalmente graças aos votos no nordeste do Brasil, uma das zonas mais pobres do país. Como filho de uma família do Estado de Pernambuco, ele representou o sonho de muitos nordestinos de ascensão social. Por exemplo, Lula conseguiu 78% dos votos em Pernambuco, mas não teve maioria no estado de São Paulo com apenas 48% dos votos na segunda volta.
Foto: DW/N. Pontes
2010: Economia em alta
Após as turbulências no final do Governo Fernando Henrique Cardoso, a economia brasileira voltou a crescer com Lula, sobretudo graças ao boom de recursos naturais como o ferro e a soja. Foi o período da descoberta de mais petróleo offshore no chamado "Pré-Sal" e investimentos em grandes obras de infraestrutura. O crescimento médio do PIB no segundo mandato chegou a 4,6%.
Foto: AP
2010: Dilma Rousseff é a sucessora
Logo após ser reeleito, Lula começou a preparar a sua sucessão, pois, segundo a Constituição, não há mais de dois mandatos consecutivos. Como sucessora escolheu a sua então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, uma tecnocrata sem experiência nas urnas. Nos três anos seguintes, Lula promoveu a imagem de Dilma junto dos brasileiros. A estratégia funcionou e ela foi eleita em 2010.
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/EBC
2011: Luta contra o cancro
Em outubro de 2011, Lula foi diagnosticado com cancro na laringe, sendo submetido a um tratamento. Pela primeira vez desde 1979, apareceu sem barba. Exames apontaram a remoção completa do tumor cerca de cinco meses depois, e Lula voltou a participar nas campanhas do PT. Uma das grandes vitórias eleitorais de 2012 foi a de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo.
Foto: AFP/Getty Images
2016: Lula e a Operação Lava Jato
Em março de 2016, Lula foi alvo de um "mandado de condução coercitiva" pela Operação Lava Jato, que investiga o escândalo de corrupção na Petrobras, companhia estatal de petróleo. O ex-Presidente foi levado para depor sobre um imóvel em Atibaia, um triplex no Guarujá e a sua relação com empreiteiras investigadas na Lava Jato. A Polícia Federal procurou provas na sua residência e no seu instituto.
Foto: Reuters/P. Whitaker
2016: Réu em diferentes processos
Nos meses seguintes, Lula foi denunciado por uma série de crimes, como corrupção passiva, lavagem de dinheiro, obstrução da Justiça e tráfico de influência, tornando-se réu em cinco processos diferentes. O petista desmentiu sempre as acusações, negou a prática de crimes e disse ser vítima de perseguição política. Lula também nega ser proprietário dos imóveis que foram investigados.
Foto: picture-alliance/abaca
2016: Impeachment de Dilma Rousseff
Em outubro de 2014, Dilma Rousseff conseguiu ser reeleita. Mas em maio de 2016, foi afastada do cargo devido a um processo de impeachment movido contra ela a seguir à Operação Lava Jato. Dilma teve o seu mandato definitivamente cassado em agosto de 2016. O vice Michel Temer, do partido PMDB, assumiu a Presidência e governou com ministros de direita.
Foto: Reuters/J. Marcelino
2017: Depoimento como réu
Em maio de 2017, o ex-Presidente apresentou-se pela primeira vez como réu perante o juiz Sérgio Moro. Num depoimento prestado em Curitiba, Lula voltou a negar as acusações e alegou estar a ser perseguido politicamente. Exigiu ainda a apresentação de provas de que seja dono dos imóveis em Guarujá e Atibaia. O interrogatório foi o último passo antes da sentença dentro da Operação Lava Jato.
Foto: Abr
2017: Lula é condenado
Lula foi condenado pela primeira vez em 12 de julho de 2017. A sentença do juiz Sérgio Moro determinou 9 anos e 6 meses de prisão pelos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Foi a primeira vez que um ex-Presidente foi condenado por corrupção no Brasil. Lula apresentou recurso e viu a sua sentença confirmada e agravada para 12 anos de prisão na segunda instância, em janeiro de 2018.
Foto: picture alliance/AP/E. Peres
2018: Prisão para Lula
Lula recorreu para a terceira instância e, mesmo condenado na segunda, Lula não perdeu imediatamente o direito de se candidatar às eleições presidenciais de 2018, como planeado pelo PT. Mas, em abril de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil negou um recurso de Lula, que pretendia ficar em liberdade até à decisão final. Assim torna-se quase impossível uma candidatura dele.