Ruandeses reagem ao encerramento de 700 igrejas no país
Friederike Müller-Jung | tm | AFP
2 de março de 2018
O Governo alega que os estabelecimentos religiosos não têm as mínimas condições de segurança e higiene para receber os fiéis. Para especialista, medida visa conter a influência das igrejas.
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No Ruanda, pelo menos 714 igrejas foram encerradas, esta quinta-feira (01.03), na capital Kigali. A medida, que afeta principalmente as igrejas Pentecostais, foi executada pelas Forças de Segurança, funcionários do Governo e da administração municipal. Os estabelecimentos foram inspecionados e fechados sob a alegação de não apresentarem padrões de segurança e higiene mínimos.
Para uma cidadã ruandesa, que preferiu não se identificar, a decisão do Governo foi acertada. "Finalmente as autoridades fizeram algo. Eu sou pentecostal, mas desejava isso há muito tempo, porque muitos de nossos pastores são criminosos. Eles criam igrejas apenas para ganhar dinheiro".
"Encerramento de mais de 700 igrejas no Ruanda é um ato político", diz especilista
Infraestrutura precária
Não são poucos os casos de "autodenominados" pregadores que enriquecem com o dinheiro dos fiéis em países africanos. E também há críticas à poluição sonora: muitas vezes os pregadores transmitem suas mensagens com megafones. No Ruanda, especialmente, critica-se a infraestrutura.
"As igrejas não cumprem os padrões de higiene e espaço", disse Shyaka Anastase, funcionária da administração ruandesa, acrescentando que em "alguns locais as igrejas reúnem centenas de fiéis, mas não têm sequer saneamento, e as pessoas rezam em barracas ou até mesmo porões".
De acordo com outro cidadão ruandês, "os pastores violam os direitos de seus fiéis, sufocando-os nessas pequenas igrejas sem espaço".
O poder das igrejas
Entretanto, por trás da medida do Governo ruandês, acredita-se haver mais motivos do que a mera "proteção dos fiéis". Trata-se do medo de que o poder crescente dos religiosos possa influenciar a política, relata Phil Clark, pesquisador do Centro de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres (SOAS), que está no Ruanda.
"O encerramento dessas igrejas é um ato muito mais político do que o Governo diz. Ele está sinalizando às igrejas, e outras organizações sociais do Ruanda, que elas estão sendo vigiadas. Eu interpreto o ato como um claro aviso", pondera.
Até agora, as comunidades pentecostais no Ruanda têm relutado em falar sobre assuntos políticos, diz o especialista. Em outros países, contudo, grupos religiosos já estão influenciando ativamente eventos políticos. Na vizinha República Democrática do Congo, grupos católicos estão organizando manifestações contra o Presidente Joseph Kabila, exigindo que ele deixe o cargo.
É por isso que, num contexto em que o movimento religioso pentecostal no Ruanda não para de crescer política e economicamente, o Governo pode estar a tentar freá-lo com o encerramento das igrejas, acredita o especialista da Universidade de Londres.
"O Governo ruandês notou que essas igrejas também são um 'negócio', com poder económico crescente. Esse poder é visto pelo grande número de fiéis que frequenta igrejas aos domingos de manhã, por exemplo. E esse é o tipo de coisa que o Governo quer conter".
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.