"Entre eu e Deus": Documentário moçambicano chega à Alemanha
Debora Antunes
30 de setembro de 2019
Documentário que retrata a história de uma jovem moçambicana que optou por seguir o Islão discute o fundamentalismo religioso. No domingo (29.09), o filme foi exibido no Afrika Film Festival em Colónia, na Alemanha.
Karen, protagonista do documentário "Entre eu e Deus"Foto: Yara Costa
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O documentário "Entre eu e Deus", dirigido pela realizadora Yara Costa, mostra a trajetória de Karen, uma jovem moçambicana que se converteu ao islamismo fundamentalista na Ilha de Moçambique, um local onde essa vertente da religião era pouco comum, no norte do país. O filme fez parte da programação do Afrika Film Festival em Colónia, na Alemanha.
"A Karen, a personagem do filme, eu já a conheço desde dos seus cinco anos de idade. E eu acompanhei um pouco o trajeto dela da infância e adolescência e vi essa mudança no que diz respeito à escolha de uma vida mais religiosa, a seguir alguns preceitos de uma versão da religião islâmica bastante conservadora e fundamentalista que não era comum naquela região", conta Yara Costa em entrevista à DW África.
Contexto histórico
Yara Costa, realizadora Foto: Yara Costa
O filme começa a explicar o contexto histórico: o Islão teria chegado a Moçambique por volta do século VIII. Lá, fundiu-se com a cultura macua, transformando-se "num islão com características africanas". Só agora, recentemente, o Islão fundamentalista passou a crescer e ganhar adeptos - principalmente jovens - no país.
"A primeira chegada desse Islão já vem da época colonial, mas a proliferação de mesquitas que pregam este novo Islão, eu diria que, nos últimos, talvez seis anos. Por exemplo, as mulheres começaram a vestir-se com burcas e hijabs não há mais de dez anos. Isso é uma coisa absolutamente nova, não existia isso", avança a realizadora.
Yara Costa diz que resolveu tornar público o testemunho de Karen, devido ao visível crescimento do fundamentalismo religioso nos últimos anos em Moçambique.
"Nos últimos, talvez, cinco anos, observa-se uma tendência das pessoas religiosas, tanto islâmicas como cristãs, de um apego muito grande à religião e de a religião passar a ditar a forma de vida, como o que comer, como vestir, como andar, o que dizer. Essa escolha é visível e eu achei interessante discutir isso a partir de uma história pessoal e única que eu conhecia bem".
Contradições, conflitos e discriminação
"Entre eu e Deus": Documentário moçambicano chega à Alemanha
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A proposta do filme é mostrar a escolha de uma jovem, suas contradições internas e também seus conflitos numa sociedade que discrimina sua escolha religiosa.
"Uma escolha religiosa é uma coisa absolutamente pessoal e não deveria ser, em princípio, julgada por ninguém. Mas o que que acontece quando essa escolha é percebida num contexto mais alargado, da associação à violência, atos terroristas? É um desafio ser muçulmano hoje em dia em Moçambique. [É difícil] exibir e afirmar essa escolha perante à sociedade em que vivemos, que é muito anti-islâmica também, apesar de ser um país historicamente com uma forte presença dessa religião", explica Yara.
Protagonista do documentário vive conflitos pessoais devido a sua religiãoFoto: Yara Costa
O filme "Entre eu e Deus" foi lançado em 2018 em Moçambique, mas só agora chega à Europa. "Pra mim, era importante por causa do que estava acontecer em Moçambique. Por causa da situação no norte [com os ataques armados], houve uma necessidade de discutir o filme naquele contexto. Quero que todos o vejam, pois trata de assuntos muito urgentes neste momento".
Ataques armados
A onda de ataques armados no norte de Moçambique serviu como pano de fundo para o filme. "Depois que as filmagens terminaram, uma semana talvez, tivemos notícias dos primeiros ataques no norte do país que foram vastamente divulgados pelos media como ataques associados ao radicalismo islâmico. Então, o filme acabou por ter esse pano de fundo social".
Para Yara Costa, a solução para o problema é complexa, tendo em vista que não se sabe ao certo os motivos e quem realmente está por trás dos ataques, mas ela acredita que esse tipo de situação também acontece num terreno fértil, onde os jovens se tornam vulneráveis por falta de alternativas.
"Qual é o futuro dos jovens hoje em Mocímboa da Praia ou em Palma? Talvez criando alternativas para coisas que os desviem do dinheiro mais fácil, imediato, que, se calhar, pode ser obtido através desse tipo de ações violentas. Essas pessoas não são militares ou gente altamente treinada, que vem de fora. São pessoas dali, que sempre viveram ali, e com carências, pelo menos materiais, muito grandes. E então, se alguma coisa é feita no sentido de suprir essas carências, e de dar uma chance a estes jovens, talvez o crime não seria uma aposta pra eles", afirma.
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.