Novela das "dívidas ocultas" chega ao fim com a condenação de 11 dos 19 arguidos. Relembre os nomes citados no caso e algumas intervenções marcantes no julgamento do maior escândalo de corrupção em Moçambique.
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Começou a 23 de agosto de 2021 o julgamento do maior escândalo financeiro da história de Moçambique, que envolveu 19 réus e mais de 60 declarantes.
Mais de um ano depois, foi conhecida ontem a sentença dos arguidos, acusados de crimes de branqueamento de capitais, associação para delinquir, peculato, falsificação de documentos e abuso de cargo ou função. 11 dos 19 arguidos foram condenados a penas que variam entre os 10 e 12 anos de prisão.
As audiências do julgamento das "dívidas ocultas" ficaram marcadas pela ocorrência de intervenções "incomuns".
O réu António Carlos do Rosário e o juiz da causa, Efigénio Baptista, foram os protagonistas de uma delas.
"O senhor ainda quer falar de Direito? Não, não. Desculpe, meritíssimo. Se o senhor quer ser respeitado, respeite", afirmou, em tribunal, António Carlos do Rosário. "O facto de ser juiz não lhe dá o direito de faltar com o respeito às pessoas. Nós somos da mesma idade. Se o senhor foi o melhor estudante de Direito, não venha aqui insultar as pessoas", declarou.
Veja imagens da audição de Ndambi Guebuza
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Para a ativista Fátima Mimbire, a atitude do réu deve-se ao facto dele estar habituado a subordinar-se apenas ao Presidente da República: "Ficou muito claro que, sendo uma pessoa que só se relacionava com o Presidente da República, essas pessoas não respeitam as instituições. Ele não está acostumado a estar numa posição em que não manda".
O julgamento da "novela" das "dívidas ocultas", acompanhada religiosamente por muitos moçambicanos, na televisão, também teve momentos de humor. Desta feita, protagonizados pelo réu Fabião Mabunda e pelo juiz Efigénio Baptista.
"Mas o senhor sabe o que é roubar e o que é perder o telefone?", questionou a magistrada do Ministério Público Ana Sheila Marrengula.
"Eu não sei se perdi ou se foi um furto ou um roubo, eu estava piff [sob efeito do álcool]", respondeu o réu.
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2. Personalidades citadas
Durante as audições, os réus António Carlos do Rosário e Gregório Leão citaram os nomes do antigo Presidente da República Armando Guebuza e do antigo Ministro da Defesa e atual Presidente Filipe Nyusi como estando implicados no escândalo financeiro, tendo o juiz questionado:
"Quem sabia era o Ministro da Defesa, o atual Presidente Filipe Jacinto Nyusi, é isso que está a dizer?"
"Não é difícil perceber isso", respondeu o réu António Carlos do Rosário.
"Não estou a dizer que é difícil", disse o juiz.
"Parece que é difícil, parece que há um esforço ... Eu não estou aqui para defender quem quer que seja, nem quero incriminar ninguém", acrescentou António Carlos do Rosário.
A procuradora Ana Sheila Marrengula questionou os réus sobre as garantias do Estado.
"O réu veio afirmar que foi o então Ministro da Defesa. Tem alguma prova que sustenta a sua alegação?"
"Eu peço ao meu advogado para juntar aos autos a carta do então ministro das Finanças, [Manuel Chang], indicando que foi identificado o Credit Suisse, que solicita a emissão de garantias".
A sociedade civil exigiu, por sua vez, que Armando Guebuza e Filipe Nyusi fossem a tribunal. À DW, o analista Dércio Alfazema lembra que, da parte do ex-chefe de Estado, houve abertura para isso.
"O Presidente Guebuza mostrou algum interesse em sede do tribunal, para poder tecer alguns esclarecimentos à volta das poeiras que existiam", disse.
E perante a pressão para investigar o envolvimento destas duas altas figuras na contratatação das "dívidas ocultas", o tribunal veio a público dissipar as dúvidas: "O Presidente Guebuza, a sua mulher e todos os outros têm as suas contas. Nos extratos das suas contas não consta recebimento de dinheiro do grupo Privinvest [acusado do pagamento de subornos]. O Presidente Nyusi idem, não tem nada".
3. Mas onde está o dinheiro?
É o que questiona o diretor do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD), Adriano Nuvunga, que diz ser urgente a recuperação dos ativos mencionados no escândalo.
"Se nós não recuperarmos os ativos deste calote macabro, vamos ter má-nutrição crónica dos nossos filhos. Moçambique pode colapsar. Vamo-nos organizar para irmos atrás deste dinheiro", assegurou.
Julgamento das dívidas Ocultas: "Outras coisas..."
O julgamento do caso das dívidas ocultas revela aos poucos mais informações sobre o que muitos consideram o maior escândalo de corrupção de Moçambique. Conheça as peculiaridades do caso e dos seus personagens.
Foto: Fotolia/Carlson
O caso
O escândalo das dívidas ocultas veio ao de cima entre 2013 e 2014. É a maior fraude financeira de Moçambique e prejudicou a nação e a imagem do país. Em causa estão cerca de 2 mil milhões de euros. O esquema tem como "cabeças" altos funcionários do Estado e trabalhadores de bancos como o Credit Suisse. O julgamento começou a 23 de agosto e conta com 19 arguidos, 70 testemunhas e 69 declarantes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Julgamento nas instalações de uma cadeia
A falta de capacidade para albergar muita gente terá levado o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo a optar pelo Estabelecimento Penitenciário Especial de Máxima Segurança da Machava para o julgamento. E é na B.O., como é conhecida a cadeia, onde estão detidos a maioria dos envolvidos no caso. Alguns dos julgamentos mais mediatizados do país costumam acontecer aqui.
Foto: Romeu da Silva/DW
Juiz da causa é de índole duvidosa?
Efigénio Baptista não tem percurso profissional imaculado, foi julgado e condenado duas vezes por ameaças e ofensas corporais num caso de abuso de poder em Manica. Também terá sido alvo de contestação popular em Sofala, que culminou com a queima da sua casa. Alguns setores questionam a escolha do juiz, defendem que deveria ter sido escolhido um juiz sénior para o caso. O "juiz júnior" tem 42 anos.
Foto: Romeu da Silva/DW
"Alérgico a corrupção" e sujeito a pressão
Sobre as condenações, o juiz Efigénio Baptista, numa entrevista ao "O País" esclareceu: "Mas eu recorri da decisão e o Tribunal de Recurso da Beira anulou-a. Por isso, eu não tenho cadastro criminal". Baptista terá estado ainda sob pressão por ser o juiz do caso mais "cabeludo" do momento. A imprensa moçambicana chegou a noticiar sobre possíveis ameaças ao juiz.
Foto: Romeu da Silva/DW
Ordem dos Advogados em representação do povo
A Ordem dos Advoagados de Moçambique (AOM) intervém no julgamento na qualidade de assistente e pretende auxiliar o Ministério Público. O objetivo é assegurar que o povo moçambicano seja informado, atualizado e esclarecido sobre os contornos do processo. São sete representantes, entre eles os ex-bastonários Gilberto Correia e Flávio Menete.
Foto: Romeu da Silva/DW
Bendita seja a mulher entre os homens...
Ana Sheila Marrengula é representante do Ministério Público no julgamento. É a única mulher entre o jurado, o que desencadeou queixas de falta de inclusão. É apreciada pelas suas questões consideradas pertinentes, mas igualmente criticada pelos seus modos pouco profissionais de questionar os réus. Pede indemnização civil ao Estado de cerca de três mil milhões de dólares acrescidos de juros.
Foto: Christoph Hardt/picture-alliance/Geisler-Fotopress
O uniforme da discórdia
No primeiro dia do julgamento os réus não se apresentaram de uniforme prisional, como é prática no país e conforme solicitação do juiz. A defesa contestou a exigência, alegando que a lei não obriga a isso, mas no final valeu a ordem de Efigénio Baptista que defende "tratamento igual" entre os presos. Na terça-feira (24.08) a cor laranja dominava a sala de audiências na B.O.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alexandre Chivale, um advogado (in)suspeito?
Advogado da família Guebuza é a "sensação" entre os causídicos. Para além da sua postura destemida, e até entendida como de afronta, Chivale marcou o primeiro dia do julgamento. É que é administrador da Txopela, empresa suspeita do seu constituinte, Carlos do Rosário. E mais: ocupa uma das casas supostamente adquiridas com o dinheiro do calote. Tribunal deu-lhe 72 horas para deixar o imóvel.
Foto: privat
A memória curta de Cipriano Mutota
Foi a estreia do banco dos réus. Mutota revela que foi traído pelos seus parceiros do negócio na partilha dos "lucros" e não ficou contente. E não se lembra do destino dado a cerca de 656 milhões de euros que terá recebido como "luvas". O ex-diretor do Gabinete de Estudos da secreta praticamente confirmou a acusação do Ministério Público. Diz que Nyusi e Guebuza aprovaram o projeto.
Foto: Romeu da Silva/DW
Manuel Chang regressa no momento "H"
Justamente no dia do arranque do julgamento, a África do Sul anunciou a tão esperada extradição de uma das peças chave do crime, Manuel Chang. O juiz decidiu que o ex-ministro das Finanças será ouvido "na qualidade de declarante, quando estiver no território nacional", em resposta ao pedido da Ordem dos Advogados de Moçambique e reafirmado pelo Ministério Público e pelos advogados dos 19 arguidos.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
O "massagista" do sistema
Foi o lobista do negócio entre o Estado e a Privinvest, identifica-se como facilitador. Num dos emails trocado com a Privinvest mencionou uma "massagem ao sistema", mas no julgamento negou. Recebeu de Jean Boustani cerca de 8,5 milhões de dólares e recusa-se a devolver o valor, alegando que é resultante do seu trabalho. É visto como astuto, embora se tenha destacado por contradições no tribunal.
Foto: Romeu da Silva/DW
A amnésia da "cinderela"
É o terceiro réu a sentar-se no banco. Ndambi é filho do ex-Presidente Armando Guebuza é foi apelidado de cinderela pelos seus parceiros de negócios por ser lento a agir. Terá recebido 33 milhões de dólares de luvas de Jean Boustani, negociador da Privinvest. Não se recorda de quase nada que é questionado pelo juiz, diz que não tem memória de elefante. Foi um dos pivôs no tráfico de influência.