Epopeia dos marítimos africanos enaltecida em Lisboa
27 de setembro de 2020A trilogia musical "Canto Terceiro da Sereia, o Encanto" do artista angolano, Filipe Mukenga, em co-autoria com o seu conterrâneo o académico Filipe Zau, que escreveu o livro "Marítimos", foi apresentada este sábado (26.09), em Lisboa.
No disco e no livro, Mukenga e Zau contam a história dos marinheiros africanos e a sua participação na rutura com o Império Colonial no século passado.
O lançamento consubstancia-se numa reconhecida homenagem ao então Clube Marítimo Africano, criado em 1954 na capital portuguesa, pelo contributo que deu à luta pelas independências das antigas colónias.
"O Canto da Sereia, o Encanto" é um "retrato musicalizado" dos primeiros registos musicais da América Latina, incluindo novidades da época, transportados para Angola por alguns sócios do então Clube Marítimo Africano.
A trilogia músico-literária faz parte de um projeto inspirado na "Kianda", figura mitológica dos pescadores da ilha de Luanda.
A ópera de jazz, de Filipe Zau e Filipe Mukenga, compõe-se de quatro ciclos que exaltam, como pano de fundo, as memórias de um tripulante dos navios da antiga marinha mercante e um irmão, condutor de uma máquina a vapor na antiga linha férrea que culminava no Porto Amboim, na província angolana do Kwanza Sul.
O cantor e compositor angolano, Filipe Mukenga, aparece ligado a este projeto preparado ao longo de vários anos como "um parceiro ideal", cabendo-lhe a responsabilidade de vestir de música os textos produzidos por Filipe Zau. A produção musical envolveu cerca de 40 músicos em Angola, Portugal, França, Holanda e Estados Unidos.
Memória histórica
Em "Marítimos", Filipe Zau narra a história dos africanos em Portugal - nomeadamente dos marinheiros, cuja participação na rotura do Império Colonial no século XX foi preponderante. Também é assinalável na obra a história dos referidos marinheiros nas descobertas portuguesas do século XV.
O livro, na ótica de Alberto Oliveira Pinto, "remete-nos para a memória histórica". O historiador angolano, convidado a fazer a apresentação pública, lembra que esta obra surge na sequência do primeiro projeto feito em 2006.
As obras, apresentadas no auditório da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), em Lisboa, vieram a público fruto da parceria entre as editoras angolana Alende e a portuguesa Perfil Criativo, esta última dirigida por João Ricardo. O seu lançamento constitui uma homenagem à Luta pela Independência, segundo o investigador Filipe Zau, que é reitor da Universidade Independente de Angola.
As restrições impostas pela pandemia da Covid-19 impediram a deslocação a Portugal de Filipe Zau e de Filipe Mukenga, tendo os promotores decidido realizar o lançamento do CD e do livro em Lisboa até que seja possível a sua apresentação em Luanda, onde estava prevista a primeira sessão.
"No atual contexto da pandemia, é impossível a transportação do material, quer os livros quer os discos que estão em Lisboa", explica Filipe Zau, em declarações à DW África.
Devido a este facto, ambos os homenageados, entre os demais convidados fora de Portugal, fizeram uma comunicação por videoconferência, com recurso às novas tecnologias.
Clube Marítimo Africano
Em declarações à DW África a partir da capital angolana, Filipe Zau realça a importância desta homenagem no âmbito dos 45 anos da independência de Angola e, sobretudo, pela passagem dos 66º aniversário do Clube Marítimo Africano (CMA), uma associação criada em Lisboa, integrada por tripulantes de navios mercantes das companhias coloniais portuguesas, constituída na sua maioria por angolanos.
O professor angolano, filho de marítimos oriundo de Cabinda, conta as epopeias que marcaram a atividade do Clube, do qual faziam parte tripulantes da marinha mercante e alguns jovens ligados à Casa dos Estudantes do Império (CEI).
Nessa altura, lembra o também compositor, eram estudantes em Portugal figuras como Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Agostinho Neto, Lúcio Lara, Edmundo Rocha (Angola), Miguel Trovoada (São Tomé e Príncipe), entre outros, que viriam a afirmar-se como nomes de referência histórica do nacionalismo africano.
Juntos criaram o CMA, sob a capa de um clube vocacionado para questões culturais e recreativas - através do qual faziam passar mensagens de ordem política durante o período de ditadura em Portugal - destinadas aos movimentos independentistas em África.
"Conseguiram legalizar uma associação que, como diziam, só iria dedicar-se ao desporto, à cultura e à recriação", explica Zau.
"Quando era proibido juntar gente, tinham a facilidade de juntar pessoas atrás da cobertura legal conseguida com a criação do clube", revela. "Toda essa gente conseguia, juntamente com os marítimos, encontrar os momentos de recriação e momentos que lhes possibilitassem reunir clandestinamente e fazer troca de impressões e de informação", faz notar Filipe Zau.
A cultura era usada como veículo de encontros, mas sobretudo servia para o aproveitamento dos marítimos que levavam mensagens para os países onde se encontravam outros nacionalistas também ligados ao processo de luta de libertação e pela independência.
"Era a internet da época", compara Zau, que recorda que as cartas, enviadas pelos correios, eram revistadas. "Como os marítimos viajavam para todo o mundo, tinham ali uma internet de borla. Levavam as cartas em mão e depois podiam colocá-las nos correios doutros países ou contactar pessoas que iam buscar as mensagens quando chegasse o barco. As coisas funcionavam assim", descreve.
Imprimir panfletos em Angola
Foi dessa maneira que saiu de Portugal para Angola a primeira máquina policopiadora, que viria a produzir os primeiros panfletos lançados em Luanda. Filipe Zau conta que "a máquina saiu aos bocados". Ou seja, foi enviada por partes.
"Parte dessa máquina ainda foi parar a São Tomé", lembra. Ali, "a poetisa Alda Espírito Santo teve um papel muito importante na transportação de parte dessa máquina” para Luanda, por intermédio, entre outras pessoas, de Mário Van Dúnem, já falecido. "Foi através dele que se entregou as partes da máquina a Alda Espírito Santo", pormenoriza.
Segundo o antigo adido cultural da Embaixada de Angola em Lisboa, esta é mais uma homenagem do ponto de vista histórico e antropológico, "porque por detrás disso criou-se a história da sereia e dos marítimos, algo mitológico para os pescadores de Luanda". Conta-se uma história dentro da própria história, de acordo com as palavras do académico, retratada no disco.
É como se fosse "uma opereta musical africana que possibilita, em quatro atos, contar as histórias daquele tempo". Os factos inerentes à história dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) são narrados com "identidade muito própria", aquilo que Filipe Zau diz ser "a identidade da luta pela independência".
Lacuna histórica na Educação
Abordado igualmente pela DW África, Burity da Silva realça o facto de os marítimos serem um grupo pouco conhecido principalmente pela juventude angolana. Por isso, considera muito oportuno o lançamento da obra de Filipe Zau, "porque os marítimos tiveram um papel importantíssimo na altura em que não tínhamos contacto com o exterior, levando e trazendo informações".
O ex-ministro da Educação de Angola reconhece que foi uma associação importante para o(s) movimento(s) de libertação nacional, "tão importante que deve constar da história da Luta de Libertação do povo angolano, porque fizeram um trabalho valioso em momentos tão difíceis" e bastante arriscados para "transportar um simples panfleto".
O sistema de ensino não contempla estas componentes. Burity da Silva admite que, com a sua reforma gradual, o ensino em Angola deve ir introduzindo nos manuais escolares todos estes elementos que fazem parte da história da pedagogia do povo angolano.