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História

"Estávamos melhor no tempo dos portugueses que com o MPLA"

António Cascais
12 de dezembro de 2013

Júlio Baião foi soldado durante toda a sua vida: começou em 1959 no exército português, mas desertou em 1961 e integrou os movimentos de libertação. Depois da independência lutou contra o MPLA, na fileiras da UNITA.

Júlio Baião, veterano de guerra angolano: foi soldado nas fileiras do exército colonial português, mas desertou e lutou nas fileiras da UPA e da FNLA. Depois da independência combateu o MPLA nas fileiras da UNITAFoto: DW/A. Cascais

Júlio Baião, nascido em 1932, foi um simples soldado durante toda a sua vida, um veterano de guerra que chegou a atingir o grau militar de tenente-coronel. A vida militar de Júlio Baião começou no exército colonial português. Mas em 1961 desertou e integrou a União dos Povos de Angola (UPA), cujos dirigentes se refugiavam no Congo.

Depois da independência lutou contra o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), nas fileiras da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA).

Hoje, Júlio sente-se desiludido. Sente que a sua luta não é devidamente reconhecida por parte da sociedade. Critica também a "falta de democracia" em Angola. A entrevista teve lugar no recinto de uma antiga caserna militar soviética, hoje pertencente à UNITA, no município de Viana, nos arredores de Luanda.

DW África: Nasceu em 1932 na província do Huambo. A sua vida militar começou em 1959 no exército colonial português. Certo?

Júlio Baião (JB):Exatamente. Em 1959 decidi entrar na vida militar. Ingressei na tropa portuguesa, na província do Huambo. Efetuei os meus treinos no Huambo e em Sá da Bandeira [hoje Lubango]. Depois de nove meses de instrução fui transferido para Luanda.

Em Luanda os portugueses disseram-nos: "vocês têm que treinar muito porque vão para a guerra na Índia." Mas a guerra não era na Índia, era em Angola! Foi em 1960 que começou a guerra dos portugueses contra os angolanos e dos angolanos contra os portugueses. Eu estava presente quando foi disparado o primeiro tiro aqui em Angola. A luta começou em Cabinda, lembro-me bem, numa montanha na região de Miconje.

Mapa no norte de Angola: foi no enclave de Cabinda que - segundo confirma o veterano Júlio Baião - começou em 1961 a luta de libertação nacional de Angola

DW África: Em Cabinda, onde tudo começou, qual era o movimento que iniciou a guerra contra o exército colonial português?

JB: A tropa que iniciou a guerra aqui em Angola foi a União dos Povos de Angola (UPA). A UPA é que nos bateu primeiro em 1960. Não há mais partido nenhum que começou a guerra, se não a UPA! Eu sou testemunha disso.

Eu inicialmente lutei com os portugueses contra a UPA porque não sabia. Os portugueses começaram por nos dizer que os combatentes da UPA eram bandidos e que queriam ficar com Angola. Mas de facto era o contrário.

DW África: Foi aí que o Sr. Júlio desertou da tropa portuguesa, ao ver que estava a combater um "exército de libertação"?

JB: Sim, foi por isso que eu fugi. Foi em dezembro de 1960 e fui para o Congo Leopoldville [hoje Kinshasa, República Democrática do Congo]. Foi ali que Holden Roberto [líder da FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola] e Jonas Savimbi [líder da UNITA] nos recolheram e nos integraram na tropa deles. Holden Roberto e Jonas Savimbi vieram falar com Mobutu [Presidente do Zaire, hoje República Democrática do Congo] e pediram para que a gente integrasse as tropas deles. E assim entrei na UPA em 1961 e participei na luta contra os portugueses até 1975.

DW África: Lembra-se dos ataques da UPA de 15 de março de 1961 que marcaram o início da guerra propriamente dita?

JB: Eu mesmo sou testemunha disso. Havia as fazendas no norte de Angola. Eram fazendas de café, de algodão e de outros produtos. E a UPA atacou essas fazendas. Foi ali que também começou a guerra. Primeiro em Cabinda, em 1960, e depois no norte de Angola, em 1961. E foi ali mesmo que eu estive…

A luta dos movimentos de libertação em Angola foi um combate de guerrilha. Inicialmente era feita com armas rudimentares, como "catanas ou canhangulos", como conta o soldado veterano Júlio Baião. Mais tarde viraram símbolos da luta pela independência (foto de 1975)Foto: picture-alliance/dpa

DW África: Sabe-se que os revoltosos ligados à UPA atacaram povoações e fazendas, munidos de catanas e outras armas rudimentares. Lembra-se disso? Lembra-se das armas que utilizavam?

JB: Catanas, ferros, pedras. Só havia uma arma mais sofisticada, uma arma chamada canhangulo [espingarda antiga de fabrico artesanal, de um só cano comprido e estreito, que se carrega pela boca].

Com as catanas cortávamos as cabeças dos inimigos. Eu mesmo estive lá, com catanas, pedras, ferros… Depois fomos capturando algumas armas de fogo aos portugueses. Os nossos ataques eram rápidos. A gente atacava muito rápido e depois retirava-se. Era mesmo assim. Morreram muitos portugueses civis nas fazendas, e muitos soldados, até 1975.

DW África: Morreram também muitos angolanos?

JB: Muitos angolanos também, porque quando íamos atacar as aldeias, os portugueses retaliavam.

DW África: Valeu a pena tanto sofrimento?

JB: Aquele nosso sofrimento valeu a pena, porque os portugueses acabaram por abandonar o nosso país. Houve um acordo entre os portugueses e os angolanos. O que a gente queria era que Angola ficasse nas mãos dos angolanos, mas não foi bem isso que aconteceu.

A guerra civil de Angola acabou em 2002 com a morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi. Na foto: praça no centro da cidade de Huambo, bastião histórico da UNITAFoto: Gianluigi Guercia/AFPGetty Images

DW África: Viveu momentos difíceis?

JB: Muito difíceis! Mas valeu a pena, porque os portugueses foram embora. Era isso que a gente queria. Que os portugueses fossem embora para a gente ficar aqui em Angola, no nosso país. Mas o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola ) manipulou aquilo tudo e tomou o poder até hoje. Hoje está tudo na mão do MPLA, mas tudo é porcaria.

Quem lutou e quem venceu foi a UNITA e a FNLA. Foram esses os movimentos que lutaram contra os portugueses. O MPLA estava fora do país: estava em Brazzaville (República do Congo). Mas a UNITA não estava fora do país, estava aqui dentro de Angola!

DW África: O país, os angolanos, hoje são livres, ou falta ainda muito para terem a independência verdadeira?

JB: O que eu quero dizer é o seguinte: a paz ainda não chegou a Angola. A paz ainda não apareceu aqui em Angola. Continuamos à espera da paz. A população de Angola só tem sofrimento. Você encontra mutilados, você encontra viúvas, que estão a sofrer muito. Os antigos soldados sofrem, e o povo em geral está mal.

"Estávamos melhor no tempo dos portugueses do que com o MPLA", acha veterano Júlio Baião

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DW África: Ainda há muitas feridas?

JB: Muitas mesmo. Até aumentaram. Estávamos melhor no tempo dos portugueses do que com o MPLA. No tempo do colono, a gente comia à vontade. O sofrimento que o MPLA impõe ao povo angolano é maior.

DW África: Chegou a conhecer os líderes dos movimentos? Holden Roberto, Jonas Savimbi, Agostinho Neto ou José Eduardo dos Santos?

JB: Eu vi. Eu vi António Agostinho Neto. Eu vi Holden Roberto. Eu vi Jonas Savimbi. Foi este último que me recebeu quando eu fugi da tropa portuguesa. Conheci também o José Eduardo dos Santos [Presidente de Angola], quando ainda era miúdo.

Encontrei-o em Leopoldville em 1961. Eu estive presente quando ele viajou para a União Soviética para estudar. Foi para a União Soviética em 1961. Em 1979 foi nomeado presidente depois de ter chegado da União Soviética com o corpo do Agostinho Neto. Foi aí que ele subiu imediatamente ao poder.

DW África: Qual é diferença entre Holden Roberto, Jonas Savimbi e Agostinho Neto?

JB: O grande problema é Agostinho Neto [primeiro Presidente de Angola, líder histórico do MPLA]. Holden Roberto trabalhou bem. Ele queria a paz. Jonas Savimbi: ele é que queria mesmo a paz!

Ele não lutou lá fora, ele esteve mesmo cá dentro. Era um homem verdadeiro, um verdadeiro guerrilheiro. Foi ele que lutou pela democracia. Ele queria mesmo a democracia aqui em Angola. Mas essa democracia não existe ainda, hoje em dia.

DW África: E qual é o seu sonho para o futuro dos jovens em Angola?

JB: Os jovens só vão ficar livres quando mudar esse poder do MPLA. Só então é que os angolanos vão viver bem. Se isso não acontecer, nunca mais os angolanos vão ser livres. Pode publicar tudo o que lhe digo. Não tenho receio que mencione o meu nome. Pois já sou velho. Se morrer não interessa. Eu chamo-me Júlio Baião Lundovi. O meu nome de guerra é Baião. Até hoje sou tenente-coronel. Mas muitos dos meus alunos, que eu instrui, são generais.

A independência de Angola ficou selada em janeiro de 1975 com a assinatura dos Acordos de Alvor, entre o governo português e os três principais movimentos de libertação de Angola, MPLA, FNLA e UNITA. Na foto, no meio: Jonas Savimbi, dirigente da UNITAFoto: casacomum.org/Arquivo Mário Soares
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