Sudão: Militares usaram armas pesadas contra manifestantes
Emad Hassan
15 de dezembro de 2021
Imagens e vídeos mostram que as Forças de Apoio Rápido sudanesas usaram meios antiaéreos para confrontar manifestantes desarmados. Autoridades militares podem ser acusadas de crimes contra a humanidade, dizem advogados.
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As mortes de pelo menos 41 manifestantes desarmados no Sudão chamaram a atenção dos observadores internacionais, que condenaram o sucedido.
Apesar do corte da Internet ordenado pelo general Abdel-Fattah Burhan na sequência do golpe militar de 25 de outubro, os ativistas conseguiram documentar o uso de armas antiaéreas e de balas perfurantes.
Vídeos dos protestos mostram claramente que as Forças de Segurança Sudanesas e milícias como as Forças de Apoio Rápido (RSF) confrontaram os manifestantes com armas proibidas de utilizar contra civis e nas cidades.
Campanha para "intimidar e reprimir protestos"
Organizações não-governamentais e grupos de direitos humanos condenaram o uso de armas pesadas contra civis, uma clara violação dos acordos humanitários que apelam à proteção dos civis.
"O ataque mortífero das autoridades de segurança do Sudão nas últimas duas semanas foi calculado para intimidar e suprimir os protestos nas ruas contra a tomada do poder pelos militares no mês passado", comentou no final de novembro Deprose Muchena, diretor regional para a África Oriental e Austral da Amnistia Internacional.
Sudão: protestos contra os militares continuam
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Entretanto, também o Comité dos Médicos Sudaneses confirmou que as forças de segurança sudanesas utilizaram munições reais contra manifestantes em Cartum.
Relatórios de pelo menos 10 autópsias, recebidas pela DW de fontes no Sudão, mostram que os tiros provocaram as mortes.
As autoridades de segurança sudanesas - lideradas pelo general Abdel-Fattah Burhan e pelo vice-presidente do Conselho de Soberania Sudanês e comandante da milícia RSF, general Mohammed Hamdan Dagalo - negaram qualquer envolvimento nas mortes, dizendo que usaram "força mínima" para dispersar os manifestantes anti-golpe.
Que tipo de armas?
O Instituto Internacional de Investigação sobre a Paz, em Estocolmo (SIPRI), explicou à DW os tipos de armas, montadas em veículos com tração às quatro rodas, que podem ser vistas nos vídeos.
1) Arma antiaérea ZPU-4
Esta arma antiaérea russa é também produzida e licenciada na China como "56" e na Roménia como MR-4. A primeira versão desta arma foi o canhão soviético KPV 14,5 x 114 mm, com um alcance de 8 km na horizontal e cerca de 5 km na vertical.
2) ZU-23-2: Arma com dois canhões antiaéreos
A arma antiaérea russa de cano duplo com um diâmetro de 23 mm tem um alcance de cerca de 2,5 km.
3) ZPU-2: Pistolas gémeas antiaéreas de 14,5 mm
A arma antiaérea ZPU-2 tem um cano de 14,5 mm de diâmetro e tem sido utilizada em vários países, incluindo na Líbia.
4) Metralhadora pesada Khawad 12,7 x 108 mm
Além disso, a Fundação Suíça SMALL ARMS SURVEY, que monitoriza o movimento de armas em todo o mundo, confirmou, por e-mail à DW, a origem russa de três armas antiaéreas, bem como a produção sudanesa do modelo chinês "Dushka".
No entanto, a China não é uma novidade no Sudão. Já em 2017, num relatório do Instituto de Investigação de Armamento de Conflitos, a China surgia como o maior exportador de armas para o Sudão.
O relatório destaca o vasto número de armas pesadas que chegaram ao Sudão, apesar da proibição de importação de armas imposta em 1994 e complementada pelo embargo de 2005 da ONU na sequência da crise do Darfur.
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A quem pertencem as armas?
A RSF, uma milícia de cerca de 40.000 homens liderada pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, é proprietária da maioria das armas pesadas vistas nos vídeos. As milícias até mostram as suas armas nas redes sociais.
"É muito preocupante que estejam a utilizar esse tipo de armas num contexto de aplicação da lei", disse à DW Simon Bagshaw, antigo conselheiro político do Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA) em Genebra e Nova Iorque, e especialista em proteção de civis em conflitos armados.
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Embora este tipo de armamento não seja proibido, de acordo com as leis internacionais, "estas armas pesadas não devem ser utilizadas contra civis, e se forem utilizadas, isso constitui uma violação da lei relacionada com o uso da força contra civis", lembra Bagshaw.
"A violência injustificada exige responsabilização"
Além disso, "o desequilíbrio entre a utilização de armas e as razões para a sua utilização conduz à ocorrência de um crime de guerra", salienta o major-general Mamoun Abu Nawar, um perito militar da Jordânia.
"Trata-se de violência injustificada que exige responsabilização no quadro das Convenções de Genebra e de Roma", afirma o especialista. "Não há motivo para uma vitória militar sobre civis desarmados", diz.
Antoine Saad, especialista em direito internacional a viver em Beirute, no Líbano, afirma que a autoridade de transição do Sudão transformou-se numa autoridade repressiva que aparentemente comete crimes contra a humanidade e genocídio.
"O uso de armas pesadas, como meios antiaéreos e balas comuns, constitui um crime de genocídio e um crime contra a humanidade, especialmente se este ato assumir um padrão coletivo", diz o perito libanês.
Sanções internacionais?
Depois da condenação da força excessiva, as sanções internacionais "podem começar com um cerco às autoridades que cometem tais crimes, económica e financeiramente", disse à DW Antoine Saad.
Para tal, sugere que os ativistas sudaneses preparem um processo legal que incluía provas documentais completas sobre assassinatos e ferimentos específicos e que tentem também identificar as pessoas que cometeram a agressão.
"O processo deve também incluir os líderes políticos que supervisionaram estes acontecimentos. Uma vez concluído, deve ser enviado ao Ministério Público o mais rapidamente possível", acrescentou.
O povo contra o exército - Cronologia da luta pelo poder no Sudão
A evacuação violenta de um campo de protesto na capital sudanesa, Cartum, exacerbou as tensões entre manifestantes e militares. A luta pelo poder documentada em imagens.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Protesto
Durante semanas, manifestantes sudaneses resistiram diante do Ministério da Defesa. Milhares exigiram um conselho de transição que incluísse civis, para poderem também decidir sobre o futuro do país. No início de junho, os militares atacaram violentamente os manifestantes. Dezenas de pessoas morreram.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Em nome da nação
Um manifestante com a bandeira nacional perto do quartel-general do exército. A bandeira representa a exigência dos manifestantes de civis nos comandos para moldarem o futuro do país juntamente com os militares. A acontecer, este seria um passo importante para a democracia.
Foto: Reuters
Sinais de alarme
Os militares aumentaram massivamente a presença nas ruas, nos dias que antecederam o massacre no início de junho. Muitos manifestantes interpretaram a situação como prova de que o exército não queria abandonar o poder. Mas esta tinha sido a grade esperança de muitos sudaneses após a queda do ditador Omar al-Bashir.
Foto: Getty Images/AFP
Uma era chega ao fim
Omar al-Bashir governou o Sudão desde 1993 até sua queda, em abril de 2019. Os seus críticos foram violentamente reprimidos. Para manter o poder, al-Bashir chegou a dissolver o Parlamento, em 1999. Na mesma altura, concedeu asilo ao líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden. Acima de tudo, porém, o seu nome continua associado à guerra sangrenta contra os separatistas na província de Darfur.
Foto: Reuters/M. Nureldin Abdallah
Ditador em tribunal
Ver o ditador em tribunal era um sonho antigo de muitos sudaneses. A 16 de junho, Omar al-Bashir apareceu no processo contra ele instaurado. Para já, é acusado de corrupção e posse ilegal de moeda estrangeira. Depois da sua queda, a polícia encontrou na sua residência sacos de dinheiro no valor de mais de cem milhões de dólares.
Foto: picture-alliance/AP Photo/M. Hjaj
As mulheres querem ser ouvidas
Muitas mulheres participaram nos protestos. As mulheres no Sudão sempre beneficiaram de uma liberdade relativamente significante. Agora, não só reforçam quantitativamente as manifestações, como também lhes dão um rosto diferente. A sua presença expressa o desejo de democracia e igualdade de muitos cidadãos.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Ícone da revolução
A estudante de arquitetura Alaa Salah tornou-se a face da revolução. Quando subiu ao telhado de um carro em abril para falar com os manifestantes, um fotógrafo atento fez esta imagem. Desde então, ela tem sido partilhada inúmeras vezes nas redes sociais. Fotos como estas tornaram-se uma parte importante da revolução, porque convidam os cidadãos a identificarem-se com os protestos.
Foto: Getty Images/AFP
Solidariedade internacional
Graças às plataformas sociais online, a notícia dos protestos no Sudão rapidamente correu o mundo. E logo mereceram apoio internacional, como aqui em Edimburgo, Escócia. Recentemente os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia também se fizeram ouvir: "A UE apela ao fim imediato de toda a violência contra o povo sudanês", disseram numa declaração oficial.
No entanto, a oposição ao exército no poder não é consensual. Muitos sudaneses apoiam os militares, porque acreditam que só uma governação autoritária pode conduzir o país a um futuro próspero. Os apoiantes dos militares consideram que o General Abdel Fattah Burhan, presidente do Conselho Militar, representado no cartaz, reúne as condições para cumprir a tarefa.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
À espera
Mas a eminência parda General Mohammed Hamdan Daglu, conhecido por Hemeti, é tido como o homem forte do regime de transição. Daglu comandou a tropa que reprimiu os protestos em frente ao quartel-general militar. Durante a guerra do Darfur, liderou as milícias Janjaweed, que combateram brutalmente os rebeldes. Os manifestantes temem que ele possa vir a ser o novo governante do país.
Foto: Reuters/M.N. Abdallah
O Golfo preocupado
Políticos de outros países árabes também olham com nervosismo para o Sudão. Por exemplo, Mohamed bin Zayad al-Nahyan, o Príncipe Herdeiro dos Emirados Árabes Unidos. Tal como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos temem que o protesto possa ser um exemplo de uma revolução popular bem-sucedida na região, pondo em questão governos autoritários. Ambos os países apoiam os militares sudaneses.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Ministry of Presidential Affairs/M. Al Hammadi
Os vizinhos a norte
Também no Cairo se olha com preocupação para Cartum. O Governo do Presidente Abdel-Fattah al-Sisi receia que a Irmandade Muçulmana possa ganhar influência no Sudão - precisamente o grupo contra o qual o Governo egípcio está a agir com todas as suas forças no seu próprio país. Se a Irmandade Muçulmana se estabelecesse no Sudão, poderia, a partir daí, voltar a exercer uma forte influência no Egito.
Foto: picture-alliance/Photoshot/MENA
Protestos sem fim à vista
No Sudão prosseguem os protestos. No dia 14 de junho, Sadiq al-Mahdi, uma das principais figuras da oposição do país durante décadas, exigiu uma investigação da evacuação violenta do campo de protesto. É algo que não pode agradar aos militares. As tensões poderão voltar a agravar-se.