Governo de Moçambique disse que a extradição do ex-ministro das Finanças Manuel Chang para o seu país, no caso das dívidas ocultas, é a expetativa do povo. Mas cidadãos ouvidos pela DW discordam.
"Pelas razões sobejamente conhecidas", justificou o ministro, "sendo uma delas aquela que visa fundamentalmente proteger os interesses mais nobres do povo moçambicano, porque é o mais lesado e tem todo o interesse em julgar aquele que realmente criou prejuízo ao seu erário público."
Chang está detido na África do Sul desde o final de dezembro, a pedido dos Estados Unidos da América (EUA), onde é acusado de crimes financeiros, no caso das "dívidas ocultas".
Mas vários cidadãos ouvidos pela DW - tanto nas ruas de Maputo, como nas redes sociais - questionam as palavras de Joaquim Veríssimo.
Decisão sobre extradição de Chang "não surpreendeu"
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Vontade do povo
"Povo? Que povo?", pergunta Fred Sortinho Mucavel. "Parem de escamotear a verdade invocando o nome do povo", pede este utilizador na página da DW no Facebook.
Mucavel acredita que não é a população em geral que quer julgar o ex-ministro Manuel Chang em Moçambique, mas sim "um certo punhado de gente que desde o começo usou o nome do povo e a bandeira nacional para alcançar os seus objetivos obscuros".
O tom do debate é marcado por uma questão central: será que a Justiça moçambicana saberá lidar com o processo de Chang?
Em entrevista à Rádio Moçambique, o ministro da Justiça Joaquim Veríssimo garantiu que sim: "Nós sabemos que a Procuradoria e outras instituições desde o princípio cuidaram desta questão das dívidas ocultas com propriedade. Mesmo o Governo se posicionou perante esta situação", disse.
Mas, mais uma vez, vários cidadãos ouvidos pela DW duvidam das palavras do ministro. "Vamos ver se a Procuradoria, que dizia não ter instrumentos, agora vai ter", afirmou um deles em Maputo.
Julgado à revelia nos EUA?
Um dos grandes receios é que a política influencie as decisões da Justiça: "Em Moçambique não existe aquilo a que chamamos de separação de poderes. Até porque o Sr. Manuel Chang ainda é deputado da Assembleia da República. Ainda é imune", comenta Basílio Mbazo.
Hélio Reno Sale admite também que o sistema judiciário de Moçambique não tenha "capacidade, nem independência, para julgar um arguido como Manuel Chang. Por isso é que quase 90% dos moçambicanos desejam que o julgamento fosse nos EUA, onde há independência nos órgãos de Justiça".
Extradição de Chang para Moçambique: "Vontade do povo?"
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Os EUA foram os primeiros a enviar à África do Sul um pedido para a extradição de Manuel Chang. Mas o ministro sula-africano da Justiça e Serviços Correcionais, Michael Masutha, disse que resolveu extraditar Chang para Moçambique por o ex-ministro ser cidadão moçambicano e por o alegado crime ser "cometido enquanto ele era ministro".
Além disso, Masutha declarou: "Tomei nota que o pedido feito pelos EUA foi submetido algumas semanas antes do da República de Moçambique. No entanto, tendo considerado o assunto no seu contexto total, tendo em conta os critérios previstos quer no Tratado de Extradição EUA-África do Sul, por um lado, e no Protocolo sobre Extradição da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral [SADC, na sigla em inglês), pelo outro lado, bem como os factos relevantes, acredito que o interesse da Justiça será mais bem servido acedendo ao pedido da República de Moçambique".
Ainda assim, em entrevista à DW, o analista político e advogado Job Fazenda refere que, mesmo sendo extraditado para Moçambique, o ex-ministro Manuel Chang poderá ainda enfrentar a Justiça norte-americana.
"A única coisa que vai acontecer a Manuel Chang, estando em Moçambique, é que o julgamento vai acontecer à revelia, porque ele não é único réu no processo. E, sendo ele condenado, nunca vai passar por um Estado que tenha acordo de extradição com os EUA", diz Fazenda.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)