A Câmara de Almada, em Portugal, está a demolir 80 habitações clandestinas, também de famílias com raízes nos PALOP. Os habitantes percebem a necessidade de um realojamento, mas muito temem acabar por ficar sem abrigo.
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Termina esta quinta-feira (06.10) o prazo de seis dias dado pela Câmara Municipal de Almada, em Portugal, para a demolição de cerca de 80 construções clandestinas do aglomerado do Segundo Torrão. É o maior bairro de lata ainda existente na região de Lisboa. Entre os habitantes há várias famílias de imigrantes originários de países africanos de língua portuguesa (PALOP).
Sob o olhar de agentes da proteção civil, a escavadora vai derrubando uma a uma as estruturas frágeis. Há moradores que arrancam portas e janelas à martelada para tentar salvar alguns bens.
A autarquia constatou que uma vala em estado de degradação põe em risco vidas humanas de uma parte do aglomerado à beira do rio Tejo. Mas no bairro do Segundo Torrão, na Trafaria, o clima é de tensão e os residentes dizem-se desesperados.
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O receio de ficar ao relento
Maria Armanda, portuguesa de origem são-tomense, é uma das moradoras que tem de deixar o bairro onde vive há 25 anos, juntamente com as filhas.
"Avisaram com antecedência que nós íamos sair por causa da vala. Mas, depois, apareceu a época da Covid-19 e eles suspenderam tudo", disse a moradora à DW África.
O seu medo é ficar desalojada: "Eles já tinham tempo suficiente para fazer um bairro para alojar as pessoas. Não fizeram. Só agora que estão mesmo apertados é que nos estão a tirar a pressa".
Maria Armanda diz que não tem condições para suportar as despesas de uma nova habitação.
"Tratados como animais"
Alguns dos residentes anteciparam a demolição. Outros dizem que vão ali permanecer até que seja encontrada uma solução razoável. Job da Rocha, angolano que vive aqui há 14 anos, veio em busca de uma vida melhor para a família. Critica os critérios de realojamento da Câmara Municipal de Almada.
"A Câmara diz que somente aqueles que apareceram na reunião [para debater o futuro do bairro] têm direito a realojamento. A Câmara diz que as pessoas que não apareceram são não elegíveis. Significa também que não vivem cá. Isto não faz sentido. Nós somos tratados como se fossemos animais."
Marginalização: Onde vivem os afrodescendentes em Lisboa
Em Lisboa, vivem dispersas várias comunidades, entre as quais a africana e de afrodescendentes. Ao longo dos anos, foram submissas a uma posição social que contribuiu para a sua marginalização.
Foto: DW/J. Carlos
O caso extremo da Jamaica
Jamaica é um exemplo de marginalidade no Vale de Chícharros, situado no Seixal, no distrito de Setúbal. "As condições são incríveis. Nem se acredita", lamenta a arquiteta italiana, Elena Taviani. O realojamento das famílias, de acordo com a autarquia local, ficará completo em dezembro, antecipando o calendário para a sua conclusão em 2022. Aqui vai nascer um parque urbano e uma zona comercial.
Foto: DW/J. Carlos
Mapeamento dos bairros
A arquiteta italiana Elena Taviani decidiu fazer o mapeamento dos bairros residenciais onde é assinalável a presença de africanos e afrodescendentes para avaliar o índice de marginalização no espaço urbano na Área Metropolitana de Lisboa. O estudo em curso pretende mostrar que tais comunidades foram "empurradas" pelas estruturas do poder a ocupar uma posição marginal em Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
"6 de maio" em fase de extinção
No bairro "6 de maio", na Damaia, também construído por imigrantes africanos, ainda restam estruturas num raio de dois quilómetros. A forma como foram realizadas as demolições e o realojamento das pessoas que ali moravam ainda estão a ser objeto de grande debate e conflito entre a população e a Câmara Municipal.
Foto: DW/J. Carlos
Cova da Moura e o estigma da criminalidade
A Cova da Moura, no concelho da Amadora, mantém o seu traçado arquitetónico peculiar, onde é muito forte a identidade cultural africana, em particular a cabo-verdiana. Um dos bairros informais outrora rotulado de "problemático" pela imprensa "é um dos sítios onde as pessoas ainda evitam ir pelo seu forte estigma de negatividade e criminalidade", refere Elena Taviana.
Foto: DW/J. Carlos
Sinais de degradação no Bairro Amarelo
No Monte da Caparica, em Almada, fica o Bairro Amarelo. O também conhecido Bairro do Pica Pau Amarelo acolheu grupos de pessoas oriundas dos PALOP que viviam em barracas espalhadas pelo município. O bairro está minimamente dotado de infraestruturas sociais, mas notam-se sinais de degradação dos edifícios e falta de higienização nalgumas das áreas circundantes e do interior.
Foto: DW/J. Carlos
Protestos por uma melhor habitação
Ricardina Cuthbert, do precário Bairro da Torre em Camarate (Sacavém), é uma das vozes que, desde 2012, tem reclamado melhores condições de habitação para cerca de 40 famílias que lá vivem. "Tem sido um processo muito lento", lamenta a dirigente da Associação Torre Amiga.
Foto: DW/J. Carlos
Trajetória espacial dos afrodescendentes
Elena Taviani quer aprofundar o estudo sobre esses bairros para a sua tese de doutoramento a apresentar, em 2021, no Gran Sasso Science Institute (Itália). Em junho, a arquiteta publicou uma análise relativa à trajetória espacial dos afrodescendentes na revista científica de Estudos Urbanos "Cidades, Comunidades e Territórios", editada pelo Instituto Universitário de Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
Mouraria em transição
A Mouraria, onde vive Taviani com o marido cabo-verdiano e a filha, está numa fase de profunda renovação por força da especulação imobiliária. No passado, tinha o estereótipo de um lugar central, mas degradado, com rendas muito baixas, o que atraiu muitos imigrantes, entre os quais africanos. De acordo com a sua pesquisa, cerca de 25% dos que moram em Mouraria são originários dos PALOP.
Foto: DW/J. Carlos
Uma das zonas de referência
Apesar da inflação dos preços provocada pela valorização urbana e pelo turismo, o bairro da Mouraria ainda tem alguma presença de africanos e afrodescendentes. Ainda antes dos asiáticos, introduziram aqui o comércio de produtos oriundos de África, acabando por ser hoje uma zona de referência na capital para negócios e para quem quer fazer compras ou procurar gastronomia dos países de origem.
Foto: DW/J. Carlos
Sem razões de queixa
Januário morava numa barraca em Algés. Veio para Portugal com 16 anos e fixou-se na Outurela quando tinha 39 anos de idade. Natural de Cabo Verde, ele está em Portugal há 45 anos, já com nacionalidade portuguesa. Gosta do bairro e do convívio entre as pessoas. Os transportes funcionam bem, tem autocarros à porta. Não tem razões de queixa.
Foto: DW/J. Carlos
O bom exemplo de Outurela
Outurela – onde existe uma forte comunidade cabo-verdiana – é considerado "um caso bem sucedido" no âmbito do programa de realojamento da Câmara Municipal de Oeiras. "Os moradores dizem que tiveram sorte de serem realojados ali", afirma Elena Taviani, que menciona também o Casal da Mira, na Amadora, como um sítio onde as coisas vão melhorando, apesar do forte estigma negativo.
Foto: DW/J. Carlos
Arte urbana na Quinta do Mocho
A Quinta do Mocho, em Loures, passou a designar-se Terraços da Ponte, depois de construído. É uma das "ilhas" com grandes problemas de marginalidade. O bairro, que sempre teve uma imagem negativa, foi transformado na maior galeria de arte urbana a céu aberto da Europa com mais de cem grafittis nas suas fachadas cegas. Essa é uma tentativa de criar um novo pólo de atração turística.
Foto: DW/J. Carlos
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Outro morador, o cabo-verdiano Adriano Martins, vive no bairro com a família desde 2005. A sua casa não está, para já, entre as que vão ser demolidas. No entanto, considera uma injustiça as pessoas serem retiradas dos espaços que construíram com bastante trabalho e sacrifício.
"Gastaram muito dinheiro a melhorar a habitação para viver condignamente", afirma Martins.
"O que eles estão a fazer é tentar diminuir o potencial do bairro, porque está a crescer muito, de facto. Mas também a política de habitação social do Governo nunca sai do papel", acrescenta.
A autarquia de Almada, através de um comunicado enviado à DW África, diz que ponderou as várias soluções de realojamento. Isto porque "o estado de degradação em que se encontra a vala de drenagem que atravessa o bairro do Segundo Torrão exige uma intervenção imediata".
Perigo de vida
António Godinho, coordenador municipal da Proteção Civil de Almada, confirma o risco. "A vala tem um conjunto de construções por cima da mesma e, no âmbito das avaliações que têm sido feitos a essa infraestrutura, demos aqui um prazo em termos de segurança, até ao início do período das chuvas, para retirar as pessoas".
Godinho explica que o início da estação chuvosa pode conduzir a uma tragédia que a autarquia quer a todo o custo evitar.
De acordo com este responsável, a Câmara Municipal já desencadeou o processo para a construção de habitações definitivas que estarão concluídas previsivelmente dentro de dois anos.
A Amnistia Internacional, que acompanha o caso, reafirma que estão em causa vidas humanas e reconhece que as habitações clandestinas não são condignas.
Pedro Neto, diretor executivo da organização não-governamental, diz que as pessoas "não podem continuar a viver ali naquelas condições". Mas acrescenta: "Mais vale viver ali do que sem abrigo. E é isso que pode vir a acontecer se não se puser os processos de realojamento à frente das demolições".
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