Em Cabo Verde é aberta oficialmente esta sexta-feira (03.11.) a Morabeza - Festa do Livro, um festival literário que junta 40 escritores e artistas de África, Ásia e Europa.
Publicidade
Desde segunda-feira (30.10.) vêm acontecendo atividades relacionadas ao certame como ações de formação, visitas às escolas e uma feira do livro. A partir desta sexta-feira (03.11.) haverá concertos, sessões de poesia e mesas de debate com escritores nacionais e estrangeiros. "A construção de narrativas ilustradas”, "É doce morrer no mar” e "Em busca de um futuro” são alguns dos temas que vão ser debatidos.
Arménio Vieira, Germano Almeida, Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Osvaldo Osório, Vera Duarte, Dina Salústio, Afonso Cruz e Valter Hugo Mãe são alguns dos 40 escritores que vão participar na I edição da Morabeza - Festa do Livro.
Contato literário com o exterior
Vera Duarte, a presidente da Academia Cabo-verdiana de Letras, entende que esta é uma oportunidade para os escritores cabo-verdianos conhecerem outros mercados e trocar experiências com autores estrangeiros: "Os escritores cabo-verdianos poderão discutir sobre temas e conteúdos literários, sobre livros, sobre como fazer a divulgação das suas obras e sobre como chegar a um número cada vez maior dos leitores”.
Vera Duarte refere que a iniciativa do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde reúne todas as condições para garantir o sucesso: "Temos aqui uma mistura interessante entre as artes plásticas, simpósio, seminários”. Duarte adianta que o certame se passará em vários espaços, incluindo a Universidade de Cabo Verde, Universidade Jean Piaget de Cabo Verde e a Biblioteca Nacional, "que assume o seu papel de coordenadora da Política Nacional da promoção do livro e da literatura”, disse Duarte à DW África.
031117 CV Festa Livro - MP3-Mono
Em busca da internacionalização
À procura da internacionalização de autores cabo-verdianos a Morabeza - Festa do Livro já se conectou com outras feiras mundiais, sublinha o ministro Abraão Vicente: "A Feira da Palavra, a Rota das Letras, o LeV de Matosinhos, a feira de Frankfurt, a feira de Paraty no Brasil. Basicamente nós estamos aqui a abrir possibilidades de autores cabo-verdianos fora da feira Morabeza para que também possam participar nos festivais internacionais e nós iremos financiar essa internacionalização”.
Abraão Vicente anunciou a instituição do prémio literário Arnaldo França numa parceria entre o Governo cabo-verdiano, a Imprensa Nacional de Cabo Verde e a Casa da Moeda de Portugal. O ministro da Cultura justifica a criação deste prémio como uma forma de homenagear o poeta, ensaísta e historiador Arnaldo França por ter servido de uma maneira generosa a investigação literária e científica ligada às letras em Cabo Verde.
Um prémio para durar
Abraão Vicente acrescenta que: "Este prémio será um prémio para durar e será um prémio credível o qual os escritores cabo-verdianos com certeza terão de se esforçar para ganhar. Creio que, agora, qualquer escritor cabo-verdiano quererá ter no seu currículo o Prémio Arnaldo França, só o nome soa a importante”.
Arnaldo Carlos de Vasconcelos França, nasceu na cidade da Praia em 1925 e morreu em 2015. Reconhecido como poeta, ensaísta, académico, crítico, estudioso e historiador da literatura cabo-verdiana, é um dos nomes maiores da cultura cabo-verdiana. É autor, entre outras obras, de "Notas sobre Poesia e Ficção Cabo-Verdianas" (1962). Colaborou com a INCM na "Obra Poética", de Jorge Barbosa.
A abertura oficial da Morabeza - Festa do Livro acontece no largo do memorial de Amílcar Cabral, uma forma de homenagear o pai das nacionalidades cabo-verdiana e guineense.
Tarrafal: O Campo da Morte Lenta
O Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do cabo-verdiano Pedro Martins, "um sítio planificado para fazer sofrer as pessoas". Os presos políticos que por aí passaram recordam-no como "Campo da Morte Lenta".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Bastião de tortura
Construído numa das regiões mais agrestes de Cabo Verde, o Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do então preso político cabo-verdiano Pedro Martins, “um sítio planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas”. Para os detidos que por aí passaram, o local ficará para sempre nas suas memórias como o “Campo da Morte Lenta" devido ao regime a que eram submetidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Colónia para desterrados
Situada no concelho do Tarrafal, na ilha cabo-verdiana de Santiago, começou por chamar-se Colónia Penal. Entre 1936 e 1954 recebeu presos políticos portugueses desterrados pelo Governo do Estado Novo. Reabriu em 1961 para aí serem internados militantes anti-regime das colónias portuguesas de Angola, Cabo Verde e Guiné.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Inspirado nos campos nazis
O modo de funcionamento do Tarrafal e a forma como eram tratados os presos eram semelhantes aos de outros campos de concentração existentes no mundo. Castigos, tortura, trabalhos forçados, má alimentação e falta de assistência médica faziam parte do dia-a-dia dos detidos. A maior parte das detenções era feita de forma arbitrária.
Foto: DW/Madalena Sampaio
“Não estou aqui para curar”
Doenças como o paludismo e a biliose ceifaram muitas vidas no Tarrafal. O pequeno posto de socorro aí existente, dividido em duas salas, também servia de casa mortuária. “Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”, afirmava Esmeraldo Pais Prata, o médico do campo que tinha a alcunha de “Tralheira”. Gostava de assistir aos espancamentos e a dor dos presos deixava-o indiferente.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Ala dos presos cabo-verdianos
Os primeiros presos políticos de Cabo Verde foram internados no Tarrafal em 1968. O espaço onde estavam detidos era de tal modo exíguo que se tinham de acomodar "como sardinhas enlatadas”, recorda Pedro Martins, que foi detido quando tinha apenas 19 anos. Ao fundo da sala ficava a casa-de-banho, onde através de um transístor clandestino escutavam várias emissoras. Era a famosa "rádio retrete".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Sobreviver à alimentação
Era nesta cozinha que eram preparadas as refeições dos presos. Segundo os detidos, a alimentação era “péssima” e muito pouco diversificada. “Cachupa com uns vestígios de atum era-nos servida diariamente”, descreve Pedro Martins no livro “Testemunho de um Combatente”. Quando se recusavam a comer peixe estragado, “que nem os cães seriam capazes de comer”, o diretor mandava cortar-lhes as refeições.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Quotidiano duro
Nos dias de faxina, os detidos eram obrigados a carregar água em latas suspensas por um fio de arame. E também tinham de carregar a água para lavar as suas roupas para as tinas de betão armado. “Às vezes escasseava a água e tínhamos que a racionar”, lê-se no livro “Testemunho de um Combatente”. Nos meses mais quentes, a temperatura nas celas facilmente ultrapassava os 40 graus.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Testemunhos de sobreviventes
Na antiga cela dos presos políticos angolanos, uma exposição dá a conhecer os rostos de quem sobreviveu ao “Campo da Morte Lenta”. E testemunhos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. “A ideia principal era: vim para aqui e não sei se sairei daqui”, lê-se no poster do angolano Vicente Pinto de Andrade, que esteve aqui encarcerado entre 1970 e 1974, juntamente com o seu irmão Justino Pinto de Andrade.
Foto: DW/Madalena Sampaio
A temida "Frigideira"
Também conhecida como “câmara de torturas”, a “Frigideira” era uma caixa rectangular em cimento armado, dividida ao meio, com proporções para conter dois homens. Tinha uma porta em chapa de ferro com cinco pequenos furos na base, em cada divisória, e uma pequena grade de ferro no topo esquerdo. A temperatura aqui podia chegar aos 60 graus, segundo os detidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Tortura na “Holandinha”
No lugar da “Frigideira” foi construída outra cela disciplinar, "pouco mais alta que um homem em pé", com uma pequena janela de grades. Segundo os presos, era um “autêntico forno” onde não tinham capacidade de movimentos. A este cubículo de cimento, que ficava dentro de um espaço anexo à cozinha, deu-se o nome de “Holandinha”, numa referência ao país para onde partiam muitos cabo-verdianos.
Foto: DW/M. Sampaio
Comunicação entre presos
A muito custo, os nacionalistas africanos das colónias conseguiam, por vezes, comunicar entre si. Com a ajuda de alguns guardas “infiltrados”, os presos cabo-verdianos enviavam bilhetes aos angolanos que estavam do outro lado do campo, a quem também procuravam aliviar o sofrimento quando estes eram enviados para a “Holandinha”. Tudo feito sob uma “pressão enorme”, recordam hoje os presos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Estudar atrás das grades
No recinto existia também esta biblioteca, cuja instalação foi autorizada ainda na década de 40. Muitos camponeses aprenderam a ler e a escrever no Tarrafal. Segundo o cabo-verdiano Pedro Martins, quase todos os detidos na sua ala passaram a estudar e organizavam-se até horários de estudo. Os presos com mais instrução chegaram a dar formação política aos restantes companheiros.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Vítimas mortais
A detenção no Tarrafal custou a vida a 36 presos políticos: 32 portugueses, dois angolanos e dois guineenses. Entre as vítimas mortais de origem lusa inclui-se Bento Gonçalves, então secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP). Entretanto, vários outros morreram já depois da sua libertação, em consequência dos maus tratos e das condições de vida no campo de concentração.
Foto: DW/Madalena Sampaio
O dia da libertação
Foi por aqui que saíram os últimos presos do Tarrafal, no dia 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal. “O Tarrafal era uma prisão para o resto da vida. Se não fosse o 25 de Abril iríamos morrer todos lá”, afirmou o angolano Joel Pessoa. Nessa altura, a libertação dos presos políticos era uma das principais exigências da população.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Espaço meio abandonado
O campo do Tarrafal só foi definitivamente extinto em 1975. Acabaria por ser transformado em Museu da Resistência, em 2009. Atualmente, o espaço-símbolo da resistência anticolonialista encontra-se em estado de semi-abandono e sem grandes cuidados. Entretanto, o Governo cabo-verdiano constituiu uma comissão para preparar a candidatura do campo a Património Mundial da UNESCO.