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Patrono de Fernando Pessoa em projeto na CPLP gera polémica

João Carlos
18 de fevereiro de 2019

Considerado um dos ícones da literatura lusa, poeta é rejeitado por alguns intelectuais africanos devido à veia colonialista e racista.

Dichter Fernando Pessoa
O poeta Fernando PessoaFoto: picture-alliance/Effigie/Leemage

Será Fernando Pessoa um bom patrono para o intercâmbio entre África e Europa? A pergunta é colocada ao académico português Nuno Amado, que faz parte da equipa do projeto "Estranhar Pessoa”.

"Pessoa seria um bom patrono na medida em que é um poeta muito famoso, um dos maiores poetas de língua portuguesa. Mas há, evidentemente, outros nomes e não parece que seja consensual que o Pessoa tenha que ser esse nome", diz.

É deste modo que reage o especialista, professor na Universidade Católica, relativamente à polémica alimentada por alguns intelectuais africanos que criticam a escolha do poeta português do século XIX para dar nome a um projeto de mobilidade académica entre os países lusófonos. A socióloga angolana Luzia Moniz, uma das vozes contestatárias, considera a escolha infeliz.

"A figura de Fernando Pessoa não é propriamente uma figura agregadora, sobretudo, para um projeto que beneficiará uma grande parte da juventude, que é herdeira, que é descendente dos escravizados", declara.

Luzia MonizFoto: DW/J. Carlos

Lado colonialista de PessoaSegundo Luzia Moniz, Fernando Pessoa escreveu, aos 28 anos, que "a escravatura é lógica e legítima", tendo afirmado que "um zulu (negro da África do Sul) ou o landim (moçambicano) não representa coisa alguma de útil neste mundo". Pessoa referiu que "civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter". São afirmações, segundo Luzia Moniz, extraídas de textos publicados em 1916 e 1917.

Para chegar até as afirmações, Luzia Moniz recorreu a documentos, entre os quais a obra "Fernando Pessoa – uma quase auto-biografia”, de José Paulo Cavalcanti Filho (Porto Editora), onde encontrou textos que demonstram o lado colonialista e implicitamente racista, escritos por aquele que é considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa.

Os protestos foram apresentados aos Presidentes africanos, entre os quais Filipe Nyusi, de Moçambique, e Teodoro Nguema, da Guiné Equatorial, para que tomem uma posição em relação à matéria, "de forma a evitar que os projetos na CPLP [Comunidade de Países de Língua Portuguesa] tenham nomes de figuras cuja reputação ética, social e política seja duvidosa".

A presidente da Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana (PADEMA) também discorda que Pessoa seja um bom patrono para o intercâmbio entre África e Europa.

"Naturalmente! Nós não podemos aceitar que em pleno século XXI, depois das Nações Unidas terem definido a escravatura como o maior crime contra a Humanidade, permitir que um projeto dessa natureza, envolvendo países africanos, as vítimas da escravatura, tenha o nome de alguém que durante muitos anos, entre os 28 e os 40 anos, defendeu e apoiou a escravatura numa altura em que oficialmente a escravatura já tinha sido abolida", afirma.

Homem de várias facetasNuno Amado apurou que um dos textos, talvez o mais grave, não foi publicado por Pessoa, mas sim atribuído a Bernardo Soares (seu heterónimo e autor do livro Desassossego), que nem sequer fala propriamente da escravatura. O académico analisa uma série de casos imputados à abolição social da escravatura e diz que "é preciso perceber o contexto, onde, como e por que Pessoa escreveu aquelas frases". O professor cita a propósito uma afirmação do poeta que parece destruir as acusações que lhe estão a ser feitas.

Nuno AmadoFoto: DW/J. Carlos

"Diz ele o seguinte: 'Não há nenhum argumento sociológico decisivo contra a escravatura. O único argumento que existe é que se trata de um crime.' Esse é o argumento sociológico decisivo. Portanto, Pessoa também escreveu isso", alerta Amado.

Filho de cônsul português então em Durban, na África do Sul – onde viveu dos 7 aos 17 anos de idade –, Pessoa é homem de várias facetas. Além de poeta, também teve veia científica, como inventor e astrólogo. O investigador brasileiro Carlos Pittella, que co-escreveu a obra "Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida” (2017/Tinta da China), recorda também a postura do português contra os campos de concentração formados pelos ingleses, após a guerra dos boers (os sulafricanos de origem holandesa).

"Ele retrata isso. Não só retrata, como denuncia. Ele escreveu uma maldição a Joseph Chamberlain, que era o primeiro-ministro inglês na época e escreve em rascunho uma maldição ao Kitchener, que era o secretário-geral das Colónias. Fernando Pessoa não só se posiciona [contra isso] como critica os dois e escreve uma maldição que não foi publicada", conta.

Perspertiva mais otimistaA jovem portuguesa Laura Vidal que, no dia 30 de janeiro último, esteve na Assembleia da República Portuguesa na abertura do Ano da CPLP para a Juventude, onde se falou do referido projeto, desdramatiza.

Fernando Pessoa como patrono para mobilidade na CPLP gera polémica

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"Eu não faço ideia de como é que este nome foi escolhido, como é que foi o processo de decisão disto. Mas, da mesma forma que não me choca ter um Fernando Pessoa a dar o nome a um programa de mobilidade, também não chocaria ter um Mário Pinto de Andrade ou qualquer outro nome da CPLP. Agora, aquilo que eu acho realmente é que há um pouquinho esta ideia generalizada de que muitas vezes a CPLP pode estar a ser construída numa perspetiva muito luso-cêntrica e, se calhar, é preciso começar a desmontar um pouco essa ideia e daí dar espaço para outros protagonistas também da nossa comunidade, outros nomes do nosso património", analisa.

A dirigente juvenil considera que o mais importante é o caminho que está a ser feito para a mobilidade e o intercâmbio. "Isso é que deve ser realmente motivo de celebração", reforça. De certo modo, Laura Vidal desvaloriza a polémica, preferindo dar à construção da CPLP uma perspetiva mais otimista de futuro.

Se não Pessoa, quem?Entretanto, entre tantos nomes alternativos sugeridos por várias individualidades que se opõem à escolha de Fernando Pessoa, Luzia Moniz destaca nomeadamente o guineense Amílcar Cabral, o moçambicano Eduardo Mondlane ou o angolano Mário Pinto de Andrade como os mais consensuais.

Laura VidalFoto: DW/J. Carlos

"Mário Pinto de Andrade é um dos mais brilhantes intelectuais do espaço de língua portuguesa, é um académico, um ensaísta, um poeta também. Mário Pinto de Andrade tem imensa obra à volta das literaturas, do pensamento – do pensamento africano e mundial. Foi ministro da Informação e Cultura na Guiné-Bissau; teve um passaporte cabo-verdiano. Mário Pinto de Andrade iniciou a sua carreira académica em Angola, passou por Portugal, onde foi co-fundador do Centro de Estudos Africanos; foi professor universitário em Moçambique. Eu acho que é uma figura que por si só congrega todas as condições ideais para ser o patrono dum programa dessa natureza", afirma.

Além destes nomes, a académica são-tomense, Inocência Mata, da Facudade de Letras da Universidade de Lisboa, indica outros. Entre portugueses, há o Eça de Queirós, Luís de Camões ou Eduardo Lourenço; dos brasileiros aponta Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Machado de Assis e Jorge Amado; mas também faz referências ao moçambicano Aquino de Bragança e ao são-tomense Francisco Tenreiro.

De lembrar que o "Programa Pessoa – Mobilidade, Ciência e Desenvolvimento” é uma ideia da antiga presidente da Assembleia da República de Portugal, Assunção Esteves, deliberada na VII Assembleia Parlamentar da CPLP (AP-CPLP), em 2017. O referido projeto foi apresentado à última cimeira da CPLP (julho de 2018) pela Comissão de Língua, Educação, Ciência e Cultura da AP-CPLP. Mas, de acordo com a organização em Lisboa "ainda não há informação de qualquer desenvolvimento" sobre o aludido programa.

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