O fotojornalista Estácio Valói disse à DW que, junto com o pesquisador David Matsinhe e o seu assistente, pretendem processar os militares que os detiveram por dois dias na província de Cabo Delgado, em Moçambique.
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Em Moçambique, o fotojornalista Estácio Valói, o pesquisador David Matsinhe e o seu assistente foram libertados nesta terça-feira (18.12) à tarde. Os três estiveram sob custódia militar por cerca de 48 horas na província nortenha de Cabo Delgado, depois de terem estado a trabalhar na região entre os distritos de Palma e Mocímboa da Praia.
Entretanto, o equipamento de trabalho e os telemóveis apreendidos pelos militares não lhes foram devolvidos. Os visados ponderam entrar com uma ação contra a brigada militar em causa por violação dos seus direitos.
DW África: Pode nos narrar as circunstância em que foram detidos?
Estácio Valói (EV): Fomos detidos em emboscada pelas Forças de Defesa Nacional, isto a 15 quilómetros de Palma, na estrada principal. Quando nos aproximamos, um grupo de mais de 20 militares mandaram-nos parar, apontando as armas todas, vieram cá e mandaram-nos sair de forma agressiva: "Saiam do caro, saiam do carro! Estávamos à vossa procura. Temos ordens dos nossos superiores, os mesmos que disseram que vocês poderiam ir a Chitolo, são os mesmo que disseram para que nós vos interpelássemos aqui”. Tinham armamento por todo lado. Cercaram o carro e tivemos que descer. A primeira coisa que eles disseram foi "mostrem as vossas câmeras; onde é que estão os vossos computadores?”. Foram diretamente às minhas câmeras, confiscaram também o meu computador. Na mesma altura, ainda tínhamos os telefones nas mãos, exibíamos a credencial, a qual entregamos a eles. Ao mesmo tempo, vinha outro batalhão com mais de 30 militares e por detrás deles vinha o comandante-geral daquela área num dos blindados. Quando ele chegou, o cenário piorou. Disse-nos: "Vocês são pessoas não bem-vindas”. A seguir, dois militares entraram no nosso carro, porque estava eu, o David Matsinhe, da Amnistia Internacional, mais um assistente nosso, que é também o motorista. Levaram-nos dali de volta à Escola Primária de Quelimane. Quando lá chegamos, voltaram-se para nós e disseram que tínhamos que mostrar o que estava nos telefones. Nós recusamos e um dos capitães veio e disse: "Aqui vocês não têm direito nenhum. Vamos retirar todos os vossos direitos. É bom que nos deem as passwords dessas máquinas todas, caso contrário, aqui nós não brincamos com ninguém”. Ele continuou: "Aqui vocês vão morrer, porque esta zona está sob nossa proteção. Vão morrer e não vão saber como é que morreram e porque é que morreram”.
Moçambique: Fotojornalista detido promete ação contra militares
DW África: A informação que nos chegou através da imprensa e das agências de informação indica que Estácio Valói viajou na companhia de três jornalistas estrangeiros. Confirma isso?
EV: Não são exatamente três jornalistas estrangeiros. O único jornalista que lá estava sou eu. Temos o investigador da Amnistia Internacional, que é o David Matsinhe, e um dos nossos assistentes, que é motorista. Éramos nós três.
DW África: Sabe se o Matsinhe tinha autorização para fazer pesquisas para a Amnistia Internacional?
EV: O Matsinhe tinha autorização para fazer pesquisa a convite do Centro de Jornalismo de Investigação de Moçambique. Nós não fomos lá para fazer um trabalho para a Amnistia Internacional. O doutor Matsinhe é um académico, um pesquisador na área social. Então, como nós viemos olhar para a área social, achamos melhor convidá-lo para que se juntasse ao Centro de Jornalismo de Investigação de Moçambique, ao qual ele atendeu e veio cá e fomos juntos fazer isso.
DW África: A título pessoal, não em nome da Amnistia Internacional?
EV: Sim, veio a título pessoal, sim. Não em nome da Amnistia Internacional.
DW África: Os vossos equipamentos não vos foram devolvidos, que medidas tomaram visando a recuperação desse material?
EV: Temos alguns advogados que vão entrar em contato com o Ministério do Interior, porque foi isso o que eles disseram: "Querem o vosso equipamento? Vão ter que esperar. Contatem o Ministério do Interior”. Ou seja, o mesmo Ministério do Interior que nos autorizou a entrar em Chitolo. Então agora estamos nesse processo todo.
DW África: Face a esta atuação duvidosa das Forças de Defesa e Segurança, têm intenção de entrar com uma ação contra esses militares?
EV: Essa é uma questão que não podemos descurar. Sim, nós vamos entrar com uma ação contra estes militares, porque achamos que estamos num Estado de direito. Muito mais além do que é a liberdade de imprensa é a de expressão. E o tratamento que nós tivemos foi de ameaça de morte.
Quais as motivações dos ataques armados em Cabo Delgado?
Há mais de nove meses que o norte de Moçambique tem sido palco de violentos ataques armados. Suspeitas há muitas e até já há um estudo, mas até hoje não está claro quem são os atacantes e nem o que os move.
Foto: Privat
Mocímboa da Praia: Era uma vez um lugar pacato...
Até 5 de outubro de 2017 a província de Cabo Delgado vivia na tranquilidade, pelo menos aparentemente. Mas desde essa data tudo mudou quando cerca de 30 homens armados desconhecidos atacaram três postos da polícia do distrito de Mocímboa da Praia, matando cinco pessoas, entre elas polícias, e ferindo mais de dez. Na altura a Polícia disse que estava a investigar o caso.
Foto: DW/G. Sousa
O alastramento dos ataques
Dois meses depois Mocímboa viveu novos ataques e desde essa altura os ataques armados têm vindo a alastrarar-se muito rapidamente para outros distritos. Palma começou a ser alvo a partir de janeiro de 2018.
Foto: DW/Estácio Valoi
Marcha contra um "Islão que não existe"
Uma semana depois do primeiro ataque Mocímboa da Praia marchou pela paz. A iniciativa juntou líderes de diferentes religiões, cristã e muçulmana, estes últimos a maioria na região. Os atacantes, que se dizem muçulmanos, defendem uma visão radical do Islão. As autoridades do distrito consideram que esse é um "Islão "que não existe", e acusam "os bandidos" de usaram a religião como "capa".
Foto: Estácio Valoi
Os indícios que não terão sido tomados a sério
Já em 2016 supostos pregadores do Islão foram expulsos do país por estarem ilegais no país. Também já foi intercetado um angariador de crianças a cujos pais era prometida educação e bons tratos. Mas o destino, passando por Nampula, eram escolas corânicas com o fim de radicalização. Há também detenções de pessoas que propagam a insurgência contra as instituições do Estado.
Foto: Colourbox/krbfss
Detenções e excesso de zelo
Cinco dias após o início dos ataques, a Polícia já tinha detido 52 pessoas, o que assustou alguns líderes religiosos. Mas havia outros líderes que eram a favor, justificando a necessidade de denunciar malfeitores para "purificar fileiras", mesmo que isso leve a excesso de zelo. Mas a Polícia ainda não sabe dizer quem são os atacantes, justificando sempre que está a trabalhar no assunto.
Uma das maiores reservas de gás de mundo está em Cabo Delgado. Em Palma as multinacionais operam no setor. Em Mocímboa da Praia há minas de rubis que são bem cotados nos mercados internacionais. O IESE, MASC e um líder muçulmano realizaram um estudo na sequência dos ataques e concluiram preliminarmente que o objetivo dos atacantes é garantir o tráfico dos inúmeros recursos da região.
Foto: ENI East
Erik Prince, o salvador da pátria?
Empresário norte-americano na área de segurança tem interesses nas empresas envolvidas nas dívidas ocultas. Uma delas a Proindicus, criada para garantir a segurança nas águas moçambicanas. Por outro lado acredita-se que tenha criado uma empresa de segurança e estaria a contar como pagamento pelos serviços os dividendos do gás. Eric Prince já prestou serviços para o Governo dos EUA no Iraque.
Foto: Imago/UPI Photo
Deslocados internos: Existem ou não?
O medo dos violentos ataques fez com que a população fugisse. Mas as autoridades locais garantem que ela regressa às suas comunidades graças à patrulha feita pelo exército e afirmam que são poucas as deslocações. Entretanto, não há números exatos. Quem está a lidar com esses deslocados são as autoridades locais. Até ao momento nenhuma agência da ONU ou ONG humanitária foram chamados a intervir.
Foto: Privat
Participação das FDS na reconstrução
Embora as FDS, Forças de Defesa e Segurança, não consigam impedir as ações dos atacantes elas garantem o patrulhamento depois dos ataques. Também auxiliam diretamente na reconstrução das casas incendiadas pelos atacantes. Isso, segundo as autoridades, permite o retorno da população às suas aldeias.
Foto: Borges Nhamire
Participação das comunidades
Supõe-se que os jovens que integram os grupos armados sejam recrutados nas comunidades. As autoridades pedem, por isso, que as populações se mantenham vigilantes e denunciem qualquer ilícito ou movimentação suspeita.
Foto: Privat
Governador visita comunidades
Os assassinatos tornam-se cada vez mais bárbaros. Há decapitações com recurso à catanas e nem as crianças escapam. Na sequência do recrudescimento dos ataques e do nível de violência o governador da província de Cabo Delgado, Júlio Parruque, visitou familiares das vítimas.
Foto: Privat
Presidente de Moçambique em Cabo Delgado
A 29 de junho de 2018 o Presidente Filipe Nyusi esteve nos distritos alvo dos ataques. Pouco antes disso o estadista tinha sido criticado por alguns setores por nunca se ter pronunciado publicamente sobre os ações violentas. Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção contra ataques e mostrou abertura, convidando os atacantes para dialogar.
Foto: privat
Um mar de gente para ouvir Nyusi
Em Cabo Delgado, Filipe Nyusi foi ouvido por milhares de pessoas a quem exortou para que se distanciem de crenças religiosas que estariam na origem da instabilidade: "Estão a recrutar pessoas nos distritos costeiros. Estão a ir também a Nampula recrutar pessoas para vir morrer aqui. Não deixem que isso aconteça. Estão a semear luto nas vossas famílias. E são jovens que vocês conhecem, denunciem".