Gás natural traz nova dinâmica a Cabo Delgado
16 de fevereiro de 2013 O pequeno armazém contíguo ao aeroporto de Pemba está cheio de caixas de cartão com encomendas que chegam, por via aérea, para as várias empresas instaladas na província norte de Cabo Delgado.
Depois de algum tempo de procura, Jeffery William encontra a encomenda que procurava. Com pouco mais de seis quilogramas, a caixa, que veio da Holanda, contem peças sobressalentes de helicóptero e tem como destinatária a empresa de gás Anadarko Petroleum Corporation.
Todos os dias, por vezes mais que uma vez, Jeffrey William, moçambicano de 32 anos, desloca-se tanto ao aeroporto como ao porto de Pemba, a capital da província norte Cabo Delgado. É responsável por desalfandegar e entregar todo o material importado por aquela companhia norte-americana.
Licenciado em Gestão, Jeffrey encara o trabalho com otimismo: “é um desafio. Vou aprendendo dia após dia. A dinâmica de trabalho é diferente da de uma empresa estatal. Porque se uma pessoa começa às 7 horas, corre todo o dia e sente-se satisfeita quando consegue realizar a tarefa que tinha para cumprir. Atualmente sei que estou num bom ritmo e gosto do jeito que trabalhamos, mesmo sob pressão é bom”, comenta.
Jeffrey William trabalha para a Select Vedior, uma empresa da área de recursos humanos que presta serviços à companhia norte-americana Anadarko Petroleum Corporation. Atraída pelas enormes reservas de gás natural na Bacia do Rovuma, no norte de Moçambique, a Anadarko instalou-se no país em 2006.
Além desta, três outras empresas operam na área dos hidrocarbonetos: a italiana Eni, a noruguesa Statoil e a Petronas, da Malásia.
O maior investimento da história de Moçambique
A Anadarko e a Eni destacam-se no volume de investimento. As duas companhias anunciaram, recentemente, o maior investimento de sempre em Moçambique: 50 mil milhões de dólares (mais de 37 mil milhões de euros) para a construção de até dez fábricas de gás natural liquefeito, um megaprojeto apenas superado por outro semelhante no Qatar.
A exploração de gás não é novidade em Moçambique. Desde há alguns anos, a companhia sul-africana SASOL exporta gás dos campos de Pande e Temane, na província sul de Inhambane. Porém, as quantidades são bem menores do que se prevê para o norte do país.
A norte, na província de Cabo Delgado, a construção das fábricas para a produção de gás natural liquefeito deverá começar em 2014 e a produção e exportação em 2018. Prevê-se uma capacidade inicial para 20 milhões de toneladas/ano. Poderá ser alargada, posteriormente, a 50 milhões de toneladas/ano, que terão como destino principal o mercado asiático.
Assim Moçambique poderá tornar-se, dentro de alguns anos, o terceiro maior produtor de gás natural do mundo, logo atrás do Qatar e da Austrália.
Mais vida em Pemba
A chegada de grandes empresas internacionais trouxe um novo ritmo, entusiasmo e expectativa para o futuro de Cabo Delgado.
Emmerson Ubisse, delegado provincial do Conselho Cristão de Moçambique (CCM), nota que “tem havido a dinamização da economia”, pois “onde as companhias se instalam, instalam-se também, por exemplo, serviços de telefonia móvel, água, energia, o que de algum modo traz benefícios à comunidade. Também se tem verificado a construção de infraestruturas”, explica. Além disso, hoje circulam mais automóveis e grandes camiões de carga em ruas, muitas vezes, estreitas e de terra.
Conhecida pelas suas praias, Pemba está a alargar o turismo ao sector dos negócios. As grandes companhias internacionais instalaram os seus escritórios em Pemba, fato que funciona atualmente como alavanca: “houve muita adesão de empresas de prestação de serviços que se instalaram para aproveitar esta oportunidade de prestar serviços a essas companhias grandes. Por conta disso, muita mão de obra foi absorvida”, avalia Emmerson Ubisse.
Contudo, o delegado provincial do CCM relata que se registaram, em paralelo, “muitos problemas de contratação e despedimento de mão de obra, principalmente nas empresas que prestam serviço às grandes companhias”.
Segundo a norte-americana Anadarko, trabalham atualmente para a empresa, direta e indiretamente, cerca de dois mil funcionários, entre nacionais e estrangeiros, em Moçambique.
Muito investimento, pouco impacto, para já
Grande parte das novas firmas de prestação de serviços são estrangeiras. Pelo que a Pemba chegam cada vez mais pessoas de fora. Mas também moçambicanos que procuram novas oportunidades de emprego, que se revelam mais aliciantes para quem tem estudos e sabe falar inglês. No entanto, a mão de obra em Cabo Delgado ainda é muito pouco qualificada.
E aquela que chega de fora, sobretudo a estrangeira, tem feito subir o nível de vida. Aumentam os preços de bens alimentares como o pescado, o que afeta a vida das famílias mais pobres.
Por isso, muita gente ainda não viu a sua vida melhorar com a chegada das empresas internacionais. Cheia Inglês, o coordenador da FOCADE, o Fórum das Organizações Não Governamentais de Cabo Delgado, comenta: “vemos máquinas, aviões, helicópteros e tudo quanto é expressão de desenvolvimento, mas a passar. A comunidade propriamente não está a ver ainda o impacto disto na vida dela”.
Reconhendo essa avaliação, John Peffer, presidente da Anadarko Moçambique, garante: “os verdadeiros benefícios do projeto, em termos de emprego e mudanças em Palma e em Pemba, serão visíveis assim que o projeto de gás natural liquefeito esteja totalmente aprovado. O que acontecerá no início de 2014", altura em que irá começar a construção da primeira unidade de liquefação de gás natural. Será construída e operada, em conjunto, pela Anadarko e pela ENI.
Pemba, Mocímboa da Praia, Palma
Percorrendo 400 quilómetros a norte de Pemba, em direção à fronteira com a Tanzânia, o distrito de Palma concentra os trabalhos no terreno das grandes companhias do gás. A estrada, quase sempre de terra batida, tem vindo a ser melhorada. Mas a viagem ainda é longa e cansativa.
Ao longo do trajeto, Mocímboa da Praia é ponto de paragem. O aeródromo, que antes não era utilizado, está agora a sofrer obras de ampliação. Passou a ser utilizado pelo pessoal das empresas para aceder às plataformas de gás natural, que se encontram no mar. Em terra, melhoraram-se as estradas, apareceram novos bancos e abrem pensões para acomodar os novos funcionários estrangeiros.
Oitenta quilómetros a norte de Mocímboa da Praia, Palma não conhece ainda estradas de alcatrão, as casas, quase todas erguidas em canas de bambu sob tetos de capim, não têm água canalizada e duas únicas modestas pensões albergam os forasteiros.
Será neste distrito que ficarão instaladas as fábricas de gás natural. Ainda não se sabe onde. Mas segundo o administrador do distrito de Palma, a proposta da Anadarko entregue ao governo moçambicano pede a ocupação de sete mil hectares o que, a verificar-se, obrigará ao reassentamento de onze comunidades do distrito.
As comunidades aguardam expectantes para saber quem, onde, em que condições e com que contrapartidas serão reassentadas.
Trabalhos de prospeção afetam machambas
Os trabalhos de pesquisa das empresas implicam, por vezes, a abertura de uma espécie de estradas ou caminhos temporários, que consistem nas chamadas linhas sísmicas. Através delas é possível estudar à superfície os recursos do subsolo.
Contudo, os trabalhos têm afetado vários terrenos agrícolas, ou machambas, como lhes chamam em Moçambique.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na localidade de Mute, distrito de Palma, ao camponês Ado Bartolomeu Assala: “só me apercebi de que na minha machamba de 12 hectares passou a "estrada" na minha ausência. E só depois de uma semana é que me vieram procurar, escreveram o meu nome e tiraram-me uma foto. Eu procurei saber qual era o valor [de indemnização] e disseram-me que o valor iria ver no mesmo dia”, conta. O camponês recebeu mil meticais, considerando “não satisfatório”.
Na localidade de Quionga, também Salimo Momade viu os ramos das suas árvores serem cortados, devido aos trabalhos das empresas. Também lamenta que não lhe tivesse sido pedida autorização. “Não gostei. Se a uma pessoa lhe cortassem o braço, iria gostar? Foi como se me tivessem cortado o braço”, compara Salimo Momade.
Questionado sobre a aparente falta de comunicação, John Peffer, presidente da Anadarko Moçambique, defende que a empresa mantém boas relações com as comunidades e autoridades locais. E quanto às indemnizações, explica que segue a tabela de compensações estipulada pelo governo provincial.
Novos empregos, novas queixas
Na região, todas as pessoas conhecem algum moçambicano que trabalhe, direta ou indiretamente, para as grandes companhias. Mas emprego nem sempre é sinónimo de satisfação.
Achima Boto, motorista de uma empresa chinesa, contratada pela Anadarko, descreve alguns dos problemas: “os brancos desprezam-nos. Às vezes roubam-nos o salário e não há igualdade de direitos. Numa primeira fase, o que eles consumiam, nós consumimos igual. Mas acontece que agora temos um refeitório repartido. O que consomem lá é diferente do que nós consumimos. E não só, o salário também é diferente. Quando chega o dia de salário há muita confusão, muito regulamento, há muita mais exigência, que não se compara ao princípio do mês".
Achima Boto deixou a família e a casa em Pemba, para trabalhar em Palma, onde reside num acampamento que, conta, está cheio de poeira e bichos e a alimentação e a água são pouco condignas.
O presidente da subsidiária moçambicana da empresa, John Peffer, reconhece que aquele cenário não é novo: “reportamos um caso sobre as condições num dos acampamentos da empresa chinesa. Nós inspecionámos e concordámos com as queixas dos trabalhadores, pois as condições eram insatisfatórias. E fechámo-lo atá a empresa contratada melhorar as condições”.
Problemas não apagam esperança no futuro
Apesar das queixas nas condições de trabalho, as comunidades auguram um futuro próspero no distrito de Pemba.
Na opinião de Robert Augusto, funcionário do posto administrativo de Quionga, “com a chegada dessas empresas, as pessoas ter emprego, as pessoas vão trabalhar. Aquele que não tinha uma casa de chapa vai ter, porque já está enquadrado numa empresa a trabalhar. Não trabalharão todos os que passaram na escola, mas mesmo quem não passou na escola deverá estar também a trabalhar.
Os habitantes aguardam com ansiedade a construção das grandes fábricas de gás natural, altura em que, acreditam, a vida irá finalmente mudar. Resta saber, se é para o melhor, como muitos esperam.
Autora: Glória Sousa
Edição: António Rocha