Gâmbia discute suspensão da lei que proíbe mutilação genital
tms | com agências
19 de março de 2024
O Parlamento gambiano decidiu que uma comissão vai discutir a suspensão da lei que proíbe desde 2015 a mutilação genital feminina no país. Ativistas alertam para eventual retrocesso na luta pelos direitos humanos.
Publicidade
A votação da proposta aconteceu na segunda-feira (18.03): 42 deputados foram a favor e 4 contra. Agora o projeto de lei segue para uma comissão parlamentar, que deverá analisar a medida por pelo menos três meses.
"A atual proibição da circuncisão feminina constitui uma violação direta do direito dos cidadãos a praticarem a sua cultura e religião, garantido pela Constituição de 1997", defendeu o deputado Almameh Gibba, que apresentou a proposta ao Parlamento.
"Tendo em conta que a população da Gâmbia é predominantemente muçulmana e que a lei é incompatível com as aspirações da maioria da população, deve ser reconsiderada", justificou na sessão de segunda-feira.
Do lado de fora do Parlamento, centenas de manifestantes a favor e contra a proposta de lei acompanharam a sessão.
À lupa: Mutilação Genital Feminina
01:45
Direitos humanos em risco
Ativistas e organizações de direitos humanos dizem que o projeto é um retrocesso, depois de anos de progresso, e que coloca em risco o historial dos direitos humanos do país.
Publicidade
"É um dia muito, muito triste na história da Gâmbia", disse a A ativista Jaha Dukureh, fundadora da ONG Safe Hands For Girls (Mãos Seguras para as Raparigas), que esteve presente na manifestação:
"O facto de estarmos no Ramadão e estarmos a falar sobre as partes femininas das mulheres, mas não só, estamos a usar a religião para o justificar. Por isso, é um dia triste no meu país e o meu coração está partido", acrescentou.
Outra ativista, Fatou Baldeh, denunciou que casos de mutilação genital feminina já foram relatados desde que a proposta parlamentar veio à tona: "Nem sequer devíamos falar sobre a revogação deste projeto de lei. As consequências desta conversa ao longo dos últimos meses já tiveram um grande impacto a nível da nossa comunidade."
"Já estamos a ver que há um aumento de relatos de MGF praticada abertamente na nossa comunidade. Por isso, podem imaginar o que aconteceria se esta lei fosse revogada", sublinhou.
Quénia: Iniciação sem MGF na comunidade Maasai
02:19
This browser does not support the video element.
Prática proibida desde 2015
A proibição da MGF na Gâmbia foi adotada em 2015, durante o mandato do ex-Presidente Yahya Jammeh, impondo multas e penas de até três anos de prisão para quem praticar o ato. Jammeh acreditava que a prática estava ultrapassada e não era exigida pelo Islão.
Em agosto passado, três mulheres foram multadas por terem praticado a MGF em oito meninas, tornando-se as primeiras pessoas condenadas ao abrigo da lei.
Os dados da ONU mostram que a prevalência da MGF entre as raparigas na Gâmbia diminuiu drasticamente desde que a proibição foi decretada.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que a circuncisão feminina não traz benefícios para a saúde e pode provocar hemorragias excessivas, choques, problemas psicológicos e morte.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) afirmou num relatório divulgado no início deste mês que o número de mulheres e raparigas que foram submetidas à MGF em todo o mundo aumentou de 200 milhões há oito anos para 230 milhões atualmente.
Se a Gâmbia revogar a proibição da mutilação genital feminina, tornar-se-á a primeira nação do mundo a anular as proteções contra a mutilação.
Por isso, a ativista Jaha Dukureh deixa o apelo: "Se este projeto de lei for aprovado, dá-lhes a oportunidade de irem atrás da lei do casamento infantil, atrás da lei da violência doméstica. Não se trata apenas da mutilação genital feminina, mas das mulheres e do controlo dos seus corpos".
Mutilação genital feminina: uma tradição que teima em persistir
A mutilação genital feminina (MGF) persiste em muitos países africanos, apesar de ser proibida oficialmente. Os Pokot, no Quénia, são uma das etnias que continuam a levar a cabo esta prática.
Foto: Reuters/S. Modola
Uma lâmina para todas
Esta lâmina foi usada para mutilar quatro raparigas do Vale do Rift, no Quénia. Para o povo Pokot, o ritual marca a passagem de menina para adulta. Apesar de esta tradição brutal ser proibida por lei, muitas raparigas continuam a ser sujeitas à mutilação genital feminina (MGF), sobretudo em zonas rurais.
Foto: Reuters/S. Modola
Preparativos para a cerimónia
As meninas e mulheres Pokot aquecem-se junto à fogueira às primeiras horas da manhã. Quem não se submete à MGF tem menos hipóteses de casar. A integração das mulheres e a sua sobrevivência económica depende do casamento, principalmente nas áreas rurais. Aquelas que se recusam a participar são renegadas pela sociedade ou até mesmo expulsas.
Foto: Reuters/S. Modola
É impossível dizer "não"
Antes de se proceder ao ritual, as raparigas são despidas e lavadas. Elas sabem de antemão que, tal como as suas mães, vão ter problemas de saúde: quistos, infeções, infertilidade, complicações no parto. A mutilação genital feminina continua a ser praticada em 28 países africanos, na península Arábica e na Ásia. Também há filhas de emigrantes na Europa que são mutiladas.
Foto: Reuters/S. Modola
Espera angustiante
Estas raparigas Pokot esperam pela cerimónia de circuncisão na província de Baringo, no Vale do Rift. O Quénia proibiu a mutilação genital feminina em 2011, 27 por cento das quenianas entre os 15 e os 49 anos foram submetidas a esta prática, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Na maioria das vezes não se usa anestesia e o material não é desinfetado.
Foto: Reuters/S. Modola
Ritual mortífero
Cerimónia de circuncisão: Os Pokot esperam que as raparigas sejam corajosas e não gritem. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), 10% das raparigas morre durante esta cerimónia e 25% morre devido a complicações associadas. Na Guiné-Bissau, metade das mulheres entre os 15 e os 49 anos foi submetida a esta prática, segundo a UNICEF. Na Somália, o número ronda os 98%.
Foto: Reuters/S. Modola
Pedra ensanguentada após o ritual
A forma como se faz a excisão varia de etnia para etnia. Os Pokot fecham a abertura vaginal. A OMS distingue três tipos de MGF: no tipo 1, o clítoris é retirado. No tipo 2, retira-se o clítoris e os pequenos lábios. No tipo 3, a infibulação, os grandes lábios também são retirados e a abertura vaginal é fechada.
Foto: Reuters/S. Modola
Tingir o corpo de branco
Tingir o corpo de branco faz parte do ritual dos Pokot. Em muitos países há campanhas de esclarecimento, para alertar para os perigos da mutilação genital feminina. Mas só lentamente as campanhas dão frutos. No Quénia, há desde 2014 uma unidade da polícia que trata de questões relacionadas com a MGF. Há também uma linha SOS que recebe denúncias.
Foto: Reuters/S. Modola
Trauma para a vida
Após a cerimónia, as raparigas são cobertas com peles de animais e recolhidas para um local onde podem descansar. Na ótica dos Pokot, elas estão prontas para casar e podem receber um dote maior. Alguns povos acreditam que as mulheres submetidas à MGF são mais férteis e fiéis ao seu marido. Quando se faz uma excisão não há volta atrás. Não é possível reverter a mutilação com operações plásticas.
Foto: Reuters/S. Modola
De mãe para filha?
Esta rapariga nunca mais vai esquecer a mutilação. Em alguns países, a excisão é realizada em bebés. Sendo uma prática ilegal, um bebé a chorar dá menos nas vistas do que uma rapariga a sofrer de dores o tempo inteiro.