Genocídio no Ruanda: Justiça continua a tardar
20 de maio de 2020Mais de 25 anos depois do genocídio no Ruanda, Félicien Kabuga, um dos principais acusados procurados pela justiça internacional, foi detido nos arredores de Paris, a 16 de maio. O empresário de 85 anos vivia com uma identidade falsa e estava em fuga há mais de duas décadas. É tido como um dos financiadores do genocídio e era considerado um dos homens mais procurados do mundo.
"Kabuga é claramente um dos principais organizadores do massacre”, diz o jornalista Fred Muvunyi, da redação africana da DW. Também um residente da cidade natal de Kabuga, Muniga, acredita que o empresário foi um dos grandes organizadores do genocído: "Foi ele que fundou a emissora RTLM (Radio-Télévision Libre des Mille Colines), na altura, que despertou o ódio entre os grupos étnicos Hutu e Tutsi. Importou e distribuiu machetes em massa, massacrando centenas de milhares de ruandeses”, afirma o ruandês, que pediu o anonimato. "Estamos satisfeitos por Kabuga ter sido detido. Gostaríamos que fosse extraditado para o Ruanda e julgado lá”, acrescenta.
O Governo ruandês quer julgar Kabuga em Kigali, confirma o ministro da Justiça Johnston Busingye. O mais importante, para já, é o facto de ter sido detido pela polícia francesa: "Segundo as nossas informações, Kabuga viajou livremente por vários países da Europa nos últimos 25 anos, apesar de um mandado de captura internacional. Não foi detido em nenhum dos países. Apelamos a todos os países que escondem suspeitos para que prendam estas pessoas, como a França fez, finalmente, para que possamos levá-las à Justiça”.
Qual é o tribunal competente?
Muito provavelmente, Kabuga não será extraditado para o Ruanda, devendo responder perante o MICT – Mecanismo Internacional Residual para Tribunais Penais, tribunal de direitos humanos das Nações Unidas, explica o jornalista Fred Muvunyi. O MICT é o sucessor do Tribunal da ONU para o genocídio do Ruanda (ICTR), dissolvido há cinco anos.
"Ainda não é claro se o julgamento de Kabuga terá lugar em Haia, na Holanda, na sede do MICT, ou na sede africana em Arusha, na Tanzânia”, diz o jornalista, lembrando que seria, no entanto, mais fácil convocar testemunhas ruandesas para a vizinha Tanzânia do que para os Países Baixos.
Também Filip Reyntjens, professor de Ciência Política na Universidade de Antuérpia e especialista no Ruanda espera um "mega-processo” no MICT em Arusha: "Este processo vai trazer novas perspectivas históricas. Afinal, Kabuga não é uma personagem qualquer, mas sim uma das principais”.
É precisamente por estas pessoas que organizaram, apoiaram ou executaram o genocídio no Ruanda que o MICT – segundo o protocolo da ONU – é responsável, frisa Fred Muvunyi: "O tribunal das Nações Unidas julga as principais figuras do Governo ou do mundo empresarial, as pessoas consideradas ‘peixe graúdo'”, como Augustin Bizimana, ministro da Defesa durante o genocídio, e Protais Mpiranya, na altura, chefe da segurança do Presidente.
Milhares de suspeitos de crimes de guerra em fuga
De acordo com o Governo ruandês, sete grandes responsáveis pelo genocídio continuam em liberdade, incluindo Bizimana e Mpiranya. Além disso, há milhares de outros suspeitos menos conhecidos em fuga no estrangeiro. O Ministério Público do Ruanda emitiu nas últimas décadas mais de 1.100 mandados de detenção para responsáveis pelo genocídio em 33 países.
"No Ruanda, há uma unidade especial de busca da polícia, a chamada ‘unidade de localização', que procura os vários suspeitos que continuam em liberdade em todo o mundo”, explica Fred Muvunyi. A maioria das pessoas procuradas encontrava-se em países africanos como o Uganda, a República Democrática do Congo, o Malawi, os Camarões ou o Zimbabué. Os especialistas acreditam que muitos, como Félicien Kabuga, passaram à clandestinidade na Europa – sobretudo em França, na Bélgica, nos Países Baixos e na Alemanha.
Como é que é possível que os suspeitos se consigam esconder durante tanto tempo? Fred Muvunyi tem uma explicação: "São normalmente muito ricos e têm boas ligações até ao topo dos governos dos países onde vivem. E usam o seu dinheiro para subornar pessoas”, afirma. "Sabemos, por exemplo, que estavam intimamente ligados ao regime de Robert Mugabe". As forças de segurança de Mugabe protegeram de forma sistemática figuras procuradas pela justiça internacional.
Mais detenções na Europa em breve?
Mas também na Europa, no passado, a polícia e a justiça fizeram "vista grossa” e colaboraram pouco com os investigadores ruandeses. O Ruanda já emitiu cerca de 30 mandados internacionais contra alegados responsáveis pelo genocídio no Ruanda a viver em França, mas poucas vezes recebeu ajuda efectiva, explica o ministro ruandês da Justiça à DW. Entre eles estavam Agathe Habyarimana, viúva do antigo Presidente Juvenal Habyarimana, e o antigo ministro Hyacinthe Nsengiyumva Rakiki.
O julgamento de Félicien Kabuga vai fornecer informações valiosas que poderão levar à detenção de outros suspeitos e cúmplices do genocídio, acredita Patrick Baudoin, presidente honorário da FIDH, a Federação Internacional dos Direitos Humanos: "Este caso poderá reavivar a execução dos mandados de captura internacionais emitidos pelo MICT. O princípio da jurisdição internacional poderia ser reavivado”. Só em França, estão atualmente pendentes vários processos preliminares com o objetivo de levar a tribunal 28 alegados co-responsáveis pelo genocídio no Ruanda, acrescenta.
Uma coisa é clara, diz o jornalista ruandês Fred Muvunyi: "Uma esmagadora maioria dos ruandeses, principalmente os sobreviventes, quer que os suspeitos sejam detidos e julgados. Sempre que um destes responsáveis é detido, é um pouco de justiça para as vítimas. Ninguém quer que os crimes sejam varridos para debaixo do tapete”.
Sylivanus Karemera e Eric Topona contribuíram para este artigo