Genocídio no Ruanda: Processo "simbólico" em Paris
Lisa Louis
14 de novembro de 2023
Médico ruandês começa a ser julgado, em Paris, por alegado envolvimento no genocídio no Ruanda. O arguido nega, mas a acusação diz ter provas claras.
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O dia 6 de abril de 1994 foi um triste ponto de viragem na história do Ruanda. O avião do então Presidente Juvénal Habyarima foi atingido por um míssil quando regressava da Tanzânia. Todos os ocupantes, incluindo o então Presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, morreram. Até hoje, não se sabe quem foi o responsável por este ato.
No entanto, o incidente é tido como o gatilho do genocídio em que centenas de milhares de pessoas foram mortas. O Presidente Habyarima pertencia à maioria hutu, que culpou a minoria tutsi pelo ataque. Pouco tempo depois, o grupo começou a assassinar tutsis e hutus moderados.
A partir desta terça-feira, um ginecologista será julgado, em Paris, por alegadamente ter facilitado os assassínios em massa na circunscrição de Butare, no sul do Ruanda, atualmente conhecida como Huye. Este será o sétimo julgamento sobre o genocídio ruandês em França. Os queixosos civis falam de um caso com uma dimensão simbólica.
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Em Butare, os assassinatos começaram cerca de duas semanas após a morte do Presidente do Ruanda. Estima-se que mais de 200 mil pessoas tenham sido mortas.
O médico ginecologista Sosthène Munyemana, de 68 anos de idade e membro da etnia hutu, trabalhava num hospital naquela cidade. Em meados de junho, disse ter fugido primeiro para a República Democrática do Congo e depois foi para França, onde vive com três filhos. Munyemana trabalha desde 2001 num hospital no sudoeste francês.
Cúmplice do genocídio?
O médico é agora acusado de envolvimento em crimes de genocídio e contra a humanidade no Ruanda. Juntamente com outras personalidades locais, terá alegadamente assinado uma carta aberta de apoio ao governo de transição que organizou sistematicamente o genocídio. Munyemana é também acusado de encerrar pessoas em condições desumanas no gabinete do governo local, de que tinha a chave. Terá ajudado a transportá-las para outros sítios.
No entanto, Jean-Yves Dupeux, advogado do médico, rejeita as acusações. Segundo ele, a carta aberta data de 16 de abril – nessa altura ainda não tinham ocorrido massacres em Butare.
"O meu cliente pensava que o governo provisório poderia agir como baluarte contra a guerra civil que se aproximava", diz Dupeux à DW.
A outra acusação também seria um mal-entendido. "No dia 23 de abril, foi-lhe entregue a chave de um edifício do governo para esconder vários grupos de pessoas, para que não fossem mortas. O presidente da Câmara enviou um camião para os ir buscar. Sosthène Munyemana segurou a porta do camião. A maior parte deles foi executada mais tarde, mas o meu cliente não sabia de nada", afirma Dupreux.
Munyemana é acusado de ter participado ativamente no transporte das vítimas - ele próprio diz que não o fez conscientemente, limitando-se a segurar a porta.
Além disso, o atual Governo ruandês estará a pressionar as testemunhas para deporem contra Munyemana, porque este poderia tornar-se um potencial líder da oposição, continua o advogado: "O Governo do Ruanda é um regime ditatorial e opressivo. Um relatório recente da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch afirma que o regime ruandês está a fazer tudo o que pode para silenciar a oposição ou pessoas que têm influência no exterior".
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Dúvidas sobre pressão política
Mas a juíza Aurélia Devos comenta que está familiarizada com este argumento, porque trabalhou durante dez anos como chefe da secção de crimes de guerra do Ministério Público de Paris, criada em 2012.
"Neste tipo de crime, que é muito cometido com o sentimento de legitimidade para defender o seu Governo ou país, o modo de defesa é o de dizer que está a ser processado por razões políticas", refere a juíza em declarações à DW.
Segundo Devos, "todos os arguidos do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda utilizaram esta defesa, de que estão a ser processados por razões políticas e as testemunhas estariam preparadas para os acusar".
Alain Gauthier, cofundador da Associação de Denunciantes Civis para o Ruanda (CPCR, na sigla em francês), que representa 25 queixosos no caso, também questiona o argumento da pressão política.
"Eu pessoalmente, embora tenha estado muitas vezes no Ruanda, nunca testemunhei qualquer pressão sobre as testemunhas de defesa", comenta.
Gauthier acrescenta que já assistiu a muitos julgamentos, mas este será simbólico para ele. "Desta vez, será julgado um médico cuja profissão é tratar pessoas, mas é acusado de ser responsável pela execução de muitos tutsis. Até aqui foram julgados soldados, presidentes de Câmara, milícias, mas nunca médicos."
Este será o sétimo julgamento em França sobre o genocídio ruandês. O país tem uma responsabilidade moral de julgar estes casos, considera a juíza Aurélia Devos: "De acordo com o princípio da não retroatividade, em França, não podemos deportar para o Ruanda pessoas acusadas de genocídio, porque, na altura, não havia uma lei sobre o genocídio. É por isso que temos de levar estes casos a tribunal aqui", afirma.
Espera-se que o veredito seja anunciado a 19 de dezembro.
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.