Foi o primeiro debate no Parlamento de Cabo Verde com a presença do primeiro-ministro ao abrigo do novo regimento. Chefe do Governo diz que regionalização já não pode ser adiada. Oposição critica caos nos transportes.
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O Parlamento cabo-verdiano estreou esta quarta-feira (24.10) um instrumento do seu novo regimento, com a convocação mensal do primeiro-ministro para responder às questões dos deputados. No debate inaugural, o chefe do Governo, Ulisses Correia e Silva, afirmou que a lei da regionalização do país "já não pode ser adiada".
Por sua vez, a líder do principal partido da oposição,Janira Hopffer Almada, avisou que o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) não deverá viabilizar essa proposta, se acarretar mais custos para o Estado e para os cabo-verdianos.
Para este primeiro debate, o Governo cabo-verdiano escolheu como tema "o desenvolvimento local e regional", o que não agradou à líder do PAICV, para quem "o que mais preocupa os cabo-verdianos, neste momento, são os transportes aéreos, ou marítimos".
"Tábua rasa"
Janira Hopffer Almada criticou o Governo pelo que considera "tábua rasa" mediante às preocupações mais urgentes, e por ter escolhido um tema "que lhe desse algum conforto" e "não obrigasse a esclarecer aos cabo-verdianos sobre o caos nos transportes aéreos de passageiros", além da "intransparência no concurso de concessão de linhas marítimas inter-ilhas", criticou a política.
Entretanto, o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva mostrou-se confortável para debater a questão dos transportes com o PAICV. "Quando fala de caos nos transportes é o caos que vocês criaram. Deixaram a TACV [Cabo Verde Airlines] falida, sem crédito e sem aviões, com um avião arrestado na Holanda", afirmou.
Segundo o primeiro-ministro, o Governo está a fazer, e fez, "todo um trabalho para salvar a TACV", salientando que "não há falta de transparência no concurso de concessão de linhas marítimas" e que há um "esforço para tentar derrubar as reformas que o Governo faz".
"Desenvolvimento local e regional”
Governo de Cabo Verde não quer "adiar mais" regionalização
Já sobre o tema proposto para o debate: "o desenvolvimento local e regional”, o primeiro-ministro afirmou que a lei da regionalização não pode ser mais adiada. "Quero aqui reafirmar que o Governo, e o partido político que o suporta no Parlamento, pretendem a regionalização e têm feito tudo para isso. Ela depende dos votos de todos os actores políticos aqui representados. Por isso, reafirmo que não podemos adiar mais, é tempo de decidir".
A proposta de lei que cria as regiões administrativas e regula o seu modo de eleição, as suas atribuições e organização consta da agenda desta segunda sessão parlamentar de outubro que arrancou esta quarta-feira. A sua aprovação requer a maioria reforçada de dois terços, ou seja, são necessários os votos favoráveis dos deputados do MpD e do PAICV.
Entretanto, a presidente do PAICV avisou que os deputados do seu partido não viabilizarão essa proposta, se acarretar mais custos para o país e para os cabo-verdianos. "O PAICV apoia sim a regionalização, mas o partido não apoia nenhuma regionalização que represente mais despesa para o Estado e mais custo para os bolsos dos cabo-verdianos”, disse Almada.
"Enquanto não houver reformas necessárias, enquanto cada cabo-verdiano não entender que não vai pagar mais pela criação de mais uma estrutura de mais políticos e mais despesas, não haverá regionalização", acrescentou a líder do principal partido da oposição.
Com estas declarações, o primeiro-ministro manifestou entendimento de que o PAICV terá como objectivo inviabilizar a lei da regionalização. "A regionalização vai representar alguma despesa, mas vai trazer mais rendimento, crescimento e desenvolvimento às ilhas. A senhora acabou por dizer a verdade do vosso lado".
Tarrafal: O Campo da Morte Lenta
O Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do cabo-verdiano Pedro Martins, "um sítio planificado para fazer sofrer as pessoas". Os presos políticos que por aí passaram recordam-no como "Campo da Morte Lenta".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Bastião de tortura
Construído numa das regiões mais agrestes de Cabo Verde, o Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do então preso político cabo-verdiano Pedro Martins, “um sítio planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas”. Para os detidos que por aí passaram, o local ficará para sempre nas suas memórias como o “Campo da Morte Lenta" devido ao regime a que eram submetidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Colónia para desterrados
Situada no concelho do Tarrafal, na ilha cabo-verdiana de Santiago, começou por chamar-se Colónia Penal. Entre 1936 e 1954 recebeu presos políticos portugueses desterrados pelo Governo do Estado Novo. Reabriu em 1961 para aí serem internados militantes anti-regime das colónias portuguesas de Angola, Cabo Verde e Guiné.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Inspirado nos campos nazis
O modo de funcionamento do Tarrafal e a forma como eram tratados os presos eram semelhantes aos de outros campos de concentração existentes no mundo. Castigos, tortura, trabalhos forçados, má alimentação e falta de assistência médica faziam parte do dia-a-dia dos detidos. A maior parte das detenções era feita de forma arbitrária.
Foto: DW/Madalena Sampaio
“Não estou aqui para curar”
Doenças como o paludismo e a biliose ceifaram muitas vidas no Tarrafal. O pequeno posto de socorro aí existente, dividido em duas salas, também servia de casa mortuária. “Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”, afirmava Esmeraldo Pais Prata, o médico do campo que tinha a alcunha de “Tralheira”. Gostava de assistir aos espancamentos e a dor dos presos deixava-o indiferente.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Ala dos presos cabo-verdianos
Os primeiros presos políticos de Cabo Verde foram internados no Tarrafal em 1968. O espaço onde estavam detidos era de tal modo exíguo que se tinham de acomodar "como sardinhas enlatadas”, recorda Pedro Martins, que foi detido quando tinha apenas 19 anos. Ao fundo da sala ficava a casa-de-banho, onde através de um transístor clandestino escutavam várias emissoras. Era a famosa "rádio retrete".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Sobreviver à alimentação
Era nesta cozinha que eram preparadas as refeições dos presos. Segundo os detidos, a alimentação era “péssima” e muito pouco diversificada. “Cachupa com uns vestígios de atum era-nos servida diariamente”, descreve Pedro Martins no livro “Testemunho de um Combatente”. Quando se recusavam a comer peixe estragado, “que nem os cães seriam capazes de comer”, o diretor mandava cortar-lhes as refeições.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Quotidiano duro
Nos dias de faxina, os detidos eram obrigados a carregar água em latas suspensas por um fio de arame. E também tinham de carregar a água para lavar as suas roupas para as tinas de betão armado. “Às vezes escasseava a água e tínhamos que a racionar”, lê-se no livro “Testemunho de um Combatente”. Nos meses mais quentes, a temperatura nas celas facilmente ultrapassava os 40 graus.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Testemunhos de sobreviventes
Na antiga cela dos presos políticos angolanos, uma exposição dá a conhecer os rostos de quem sobreviveu ao “Campo da Morte Lenta”. E testemunhos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. “A ideia principal era: vim para aqui e não sei se sairei daqui”, lê-se no poster do angolano Vicente Pinto de Andrade, que esteve aqui encarcerado entre 1970 e 1974, juntamente com o seu irmão Justino Pinto de Andrade.
Foto: DW/Madalena Sampaio
A temida "Frigideira"
Também conhecida como “câmara de torturas”, a “Frigideira” era uma caixa rectangular em cimento armado, dividida ao meio, com proporções para conter dois homens. Tinha uma porta em chapa de ferro com cinco pequenos furos na base, em cada divisória, e uma pequena grade de ferro no topo esquerdo. A temperatura aqui podia chegar aos 60 graus, segundo os detidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Tortura na “Holandinha”
No lugar da “Frigideira” foi construída outra cela disciplinar, "pouco mais alta que um homem em pé", com uma pequena janela de grades. Segundo os presos, era um “autêntico forno” onde não tinham capacidade de movimentos. A este cubículo de cimento, que ficava dentro de um espaço anexo à cozinha, deu-se o nome de “Holandinha”, numa referência ao país para onde partiam muitos cabo-verdianos.
Foto: DW/M. Sampaio
Comunicação entre presos
A muito custo, os nacionalistas africanos das colónias conseguiam, por vezes, comunicar entre si. Com a ajuda de alguns guardas “infiltrados”, os presos cabo-verdianos enviavam bilhetes aos angolanos que estavam do outro lado do campo, a quem também procuravam aliviar o sofrimento quando estes eram enviados para a “Holandinha”. Tudo feito sob uma “pressão enorme”, recordam hoje os presos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Estudar atrás das grades
No recinto existia também esta biblioteca, cuja instalação foi autorizada ainda na década de 40. Muitos camponeses aprenderam a ler e a escrever no Tarrafal. Segundo o cabo-verdiano Pedro Martins, quase todos os detidos na sua ala passaram a estudar e organizavam-se até horários de estudo. Os presos com mais instrução chegaram a dar formação política aos restantes companheiros.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Vítimas mortais
A detenção no Tarrafal custou a vida a 36 presos políticos: 32 portugueses, dois angolanos e dois guineenses. Entre as vítimas mortais de origem lusa inclui-se Bento Gonçalves, então secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP). Entretanto, vários outros morreram já depois da sua libertação, em consequência dos maus tratos e das condições de vida no campo de concentração.
Foto: DW/Madalena Sampaio
O dia da libertação
Foi por aqui que saíram os últimos presos do Tarrafal, no dia 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal. “O Tarrafal era uma prisão para o resto da vida. Se não fosse o 25 de Abril iríamos morrer todos lá”, afirmou o angolano Joel Pessoa. Nessa altura, a libertação dos presos políticos era uma das principais exigências da população.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Espaço meio abandonado
O campo do Tarrafal só foi definitivamente extinto em 1975. Acabaria por ser transformado em Museu da Resistência, em 2009. Atualmente, o espaço-símbolo da resistência anticolonialista encontra-se em estado de semi-abandono e sem grandes cuidados. Entretanto, o Governo cabo-verdiano constituiu uma comissão para preparar a candidatura do campo a Património Mundial da UNESCO.