Governo do Sudão e rebeldes assinam acordo de paz histórico
AFP | Lusa | tms
3 de outubro de 2020
Acordo visa encerrar décadas de conflitos, que resultaram em centenas de milhares de mortos. Documento foi firmado em Juba, no Sudão do Sul, um ano após o início das negociações de paz. União Europeia saúda as partes.
Publicidade
"Hoje chegamos a um acordo de paz. Estamos felizes. Concluímos a missão", disse Tut Gatluak, chefe da equipa de mediação do Sudão do Sul, pouco antes da assinatura do documento este sábado (03.10).
O acordo foi assinado por três membros da delegação governamental sudanesa, liderada pelo vice-presidente do Conselho Soberano do Sudão, general Mohamed Hamdan Dagalo (também conhecido por Hemedti), juntamente com mais de dez representantes de diferentes movimentos armados (integrados na Frente Revolucionária do Sudão) e como mediador o Presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir.
Representantes do Chade, Qatar, Egito, União Africana, União Europeia e Nações Unidas também firmaram o acordo como "testemunhas". Por seu turno, o presidente do Conselho Soberano, general Abdefatah al-Burhan, assinou o texto como responsável, assim como o chefe de Estado do Chade, Idriss Deby.
Revoltas no Sudão: A dor de perder um filho
01:26
Mudanças no Sudão
O Conselho Soberano é o órgão governante máximo do Sudão durante o período de transição que começou após a destituição do ex-Presidente Omar al-Bashir, em abril de 2019. E uma das principais promessas das novas autoridades, militares e civis, era alcançar a paz, estabilidade e prosperidade em todas as áreas do país, por isso iniciaram negociações com os vários grupos armados que durante anos empunharam armas contra o regime de al-Bashir.
O acordo inclui múltiplas questões relacionadas às regiões de Darfur, Kordofan do Sul e Nilo Azul, cenários de violência, marginalização e pobreza sob o regime do ex-Presidente, acusado de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade na guerra do Darfur (2003-2008).
Os capítulos do documento contemplam o reconhecimento dos direitos ancestrais das tribos, a anulação dos direitos de propriedade concedidos por usurpação ou apreendidos pelo Governo de al-Bashir e o direito de retorno dos deslocados e refugiados, bem como a indemnização às vítimas.
Além disso, o acordo abre as portas para o restabelecimento do modelo federal, com mais prerrogativas fiscais para as regiões, que passarão a ser representadas nos órgãos governamentais de transição.
Conflitos
Entretanto, dois outros grupos rebeldes poderosos não assinaram o documento, refletindo os desafios que os sudaneses ainda enfrentam o processo de paz.
Várias guerras civis ocorreram desde a independência em 1956, incluindo a guerra de 1983-2005 que levou à secessão do sul.
A devastadora guerra no Darfur, de 2003 a 2008, fez pelo menos 300 mil mortos e 2,5 milhões desabrigados nos seus primeiros anos, de acordo com as Nações Unidas.
"Esta assinatura significa que deixamos a guerra para trás. Este acordo significa democracia, justiça, significa liberdade no Sudão, então estamos muito felizes com este acordo de paz, pois a economia do Sudão crescerá novamente", disse à agência de notícias France-Presse Ismail Jalab, membro de um dos grupos rebeldes signatários deste acordo.
Publicidade
União Europeia saúda acordo
O chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell, saudou a assinatura do acordo de paz entre o Governo sudanês e os principais movimentos armados do país, considerando que se trata de "um dia histórico".
"Hoje é um dia histórico para o Sudão, os seus cidadãos e toda a região. Muitos trabalharam sem descanso e com valor para tornar este acordo de paz uma realidade. A UE seguirá ao vosso lado para o implementar", escreveu o alto-representante da UE para Assuntos Externos na rede social Twitter.
Num vídeo que acompanha a mensagem, citado pela agência de notícias espanhola EFE, o diplomata espanhol acrescentou que o Sudão é "um país a caminho de se converter num autêntico farol de esperança e estabilidade em toda a região".
Além de agradecer a quem trabalhou para concretizar o pacto, pediu aos grupos que ainda não se juntaram à iniciativa para "pôr o interesse das pessoas primeiro e fazer disto [do acordo] uma paz autêntica para todos os sudaneses". Borrell instou, de forma explícita, o Movimento Popular de Abdelaziz al Helu e o Movimento de Libertação do Sudão de Abdelwahid Nur a seguir o exemplo dos restantes grupos armados do país, e a se comprometerem com negociações "sérias" com o Governo.
"O caminho que resta em diante não será fácil, nunca é fácil, mas com o apoio da comunidade internacional e, sobretudo, com a lendária decisão do povo sudanês, esta paz pode concretizar-se", constatou no vídeo.
O povo contra o exército - Cronologia da luta pelo poder no Sudão
A evacuação violenta de um campo de protesto na capital sudanesa, Cartum, exacerbou as tensões entre manifestantes e militares. A luta pelo poder documentada em imagens.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Protesto
Durante semanas, manifestantes sudaneses resistiram diante do Ministério da Defesa. Milhares exigiram um conselho de transição que incluísse civis, para poderem também decidir sobre o futuro do país. No início de junho, os militares atacaram violentamente os manifestantes. Dezenas de pessoas morreram.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Em nome da nação
Um manifestante com a bandeira nacional perto do quartel-general do exército. A bandeira representa a exigência dos manifestantes de civis nos comandos para moldarem o futuro do país juntamente com os militares. A acontecer, este seria um passo importante para a democracia.
Foto: Reuters
Sinais de alarme
Os militares aumentaram massivamente a presença nas ruas, nos dias que antecederam o massacre no início de junho. Muitos manifestantes interpretaram a situação como prova de que o exército não queria abandonar o poder. Mas esta tinha sido a grade esperança de muitos sudaneses após a queda do ditador Omar al-Bashir.
Foto: Getty Images/AFP
Uma era chega ao fim
Omar al-Bashir governou o Sudão desde 1993 até sua queda, em abril de 2019. Os seus críticos foram violentamente reprimidos. Para manter o poder, al-Bashir chegou a dissolver o Parlamento, em 1999. Na mesma altura, concedeu asilo ao líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden. Acima de tudo, porém, o seu nome continua associado à guerra sangrenta contra os separatistas na província de Darfur.
Foto: Reuters/M. Nureldin Abdallah
Ditador em tribunal
Ver o ditador em tribunal era um sonho antigo de muitos sudaneses. A 16 de junho, Omar al-Bashir apareceu no processo contra ele instaurado. Para já, é acusado de corrupção e posse ilegal de moeda estrangeira. Depois da sua queda, a polícia encontrou na sua residência sacos de dinheiro no valor de mais de cem milhões de dólares.
Foto: picture-alliance/AP Photo/M. Hjaj
As mulheres querem ser ouvidas
Muitas mulheres participaram nos protestos. As mulheres no Sudão sempre beneficiaram de uma liberdade relativamente significante. Agora, não só reforçam quantitativamente as manifestações, como também lhes dão um rosto diferente. A sua presença expressa o desejo de democracia e igualdade de muitos cidadãos.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Ícone da revolução
A estudante de arquitetura Alaa Salah tornou-se a face da revolução. Quando subiu ao telhado de um carro em abril para falar com os manifestantes, um fotógrafo atento fez esta imagem. Desde então, ela tem sido partilhada inúmeras vezes nas redes sociais. Fotos como estas tornaram-se uma parte importante da revolução, porque convidam os cidadãos a identificarem-se com os protestos.
Foto: Getty Images/AFP
Solidariedade internacional
Graças às plataformas sociais online, a notícia dos protestos no Sudão rapidamente correu o mundo. E logo mereceram apoio internacional, como aqui em Edimburgo, Escócia. Recentemente os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia também se fizeram ouvir: "A UE apela ao fim imediato de toda a violência contra o povo sudanês", disseram numa declaração oficial.
No entanto, a oposição ao exército no poder não é consensual. Muitos sudaneses apoiam os militares, porque acreditam que só uma governação autoritária pode conduzir o país a um futuro próspero. Os apoiantes dos militares consideram que o General Abdel Fattah Burhan, presidente do Conselho Militar, representado no cartaz, reúne as condições para cumprir a tarefa.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
À espera
Mas a eminência parda General Mohammed Hamdan Daglu, conhecido por Hemeti, é tido como o homem forte do regime de transição. Daglu comandou a tropa que reprimiu os protestos em frente ao quartel-general militar. Durante a guerra do Darfur, liderou as milícias Janjaweed, que combateram brutalmente os rebeldes. Os manifestantes temem que ele possa vir a ser o novo governante do país.
Foto: Reuters/M.N. Abdallah
O Golfo preocupado
Políticos de outros países árabes também olham com nervosismo para o Sudão. Por exemplo, Mohamed bin Zayad al-Nahyan, o Príncipe Herdeiro dos Emirados Árabes Unidos. Tal como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos temem que o protesto possa ser um exemplo de uma revolução popular bem-sucedida na região, pondo em questão governos autoritários. Ambos os países apoiam os militares sudaneses.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Ministry of Presidential Affairs/M. Al Hammadi
Os vizinhos a norte
Também no Cairo se olha com preocupação para Cartum. O Governo do Presidente Abdel-Fattah al-Sisi receia que a Irmandade Muçulmana possa ganhar influência no Sudão - precisamente o grupo contra o qual o Governo egípcio está a agir com todas as suas forças no seu próprio país. Se a Irmandade Muçulmana se estabelecesse no Sudão, poderia, a partir daí, voltar a exercer uma forte influência no Egito.
Foto: picture-alliance/Photoshot/MENA
Protestos sem fim à vista
No Sudão prosseguem os protestos. No dia 14 de junho, Sadiq al-Mahdi, uma das principais figuras da oposição do país durante décadas, exigiu uma investigação da evacuação violenta do campo de protesto. É algo que não pode agradar aos militares. As tensões poderão voltar a agravar-se.