Moçambique: Conta Geral do Estado com "irregularidades"
Leonel Matias (Maputo)
24 de março de 2021
Tribunal Administrativo voltou a constatar irregularidades na Conta Geral do Estado de 2019. Documento teve nota negativa da oposição, mas obteve a aprovação do partido no poder, a FRELIMO, que enalteceu a sua execução.
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O Tribunal Administrativo considerou esta quarta-feira (24.03) que apesar das melhorias, os mapas da Conta Geral do Estado (CGE) referentes ao exercício económico de 2019 não apresentam informação detalhada das dotações e da execução das despesas, o que não permite a análise das alterações orçamentais realizadas por cada órgão ou instituição do Estado.
O Tribunal Administrativo aponta ainda, entre outras irregularidades, que persistem situações de não canalização às direções fiscais da totalidade ou parte das receitas consignadas, por parte de algumas instituições ou organismos do Estado que as arrecadam.
Aquela entidade judicial constata também a ausência do registo contabilístico no mapa da receita proveniente da amortização de empréstimos e divergências entre os dados da CGE de 2019 e a informação prestada pela Direção-Geral de Impostos.
"Irregularidades deliberadas"
A oposição lança críticas: "A Conta Geral do Estado não foi elaborada com clareza, exatidão e simplicidade, nem obedeceu aos princípios de regularidade financeira, legalidade, economicidade, eficiência e eficácia na aplicação dos recursos públicos colocados à sua disposição", afirmou o deputado José Samo Gudo, da RENAMO, o maior partido da oposição.
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"O Tribunal Administrativo não alterou uma única palavra ao que já havia expresso na verificação da Conta Geral de 2018 e nas anteriores contas. A manifesta relutância de se alterarem os procedimentos incorretos na elaboração dos mapas do orçamento consubstancia uma irregularidade deliberada para cometimento de ilicitudes financeiras", frisou o deputado.
Já a terceira maior força parlamentar, o MDM, defende a criação de um tribunal de contas.
"A forma como o Governo aloca os recursos para o investimento acelera as desigualdades e o roubo desenfreado do Estado. O enriquecimento de uns e o empobrecimento da maioria dos moçambicanos são as verdadeiras causas da guerra que alimentam e empurram o país para o ciclo permanente de violência", criticou o deputado José Domingos Manuel.
FRELIMO aprova performance
Já da bancada da FRELIMO, só saíram palmas. O partido no poder dá nota positiva à CGE, apontando que o Governo teve um desempenho positivo em 2019, apesar de várias adversidades como as calamidades naturais, o facto da comunidade internacional ter mantido a suspensão do apoio direto ao Orçamento Geral do Estado (OGE) e a depreciação da moeda nacional.
"A cada conta que o Governo vai apresentando são notáveis os avanços alcançados por via do seguimento das recomendações da Assembleia da República e do Tribunal Administrativo ao nível da informação reportada no Orçamento e Conta Geral do Estado", comentou a deputada Monareira Abdula.
E a bancada da RENAMO criticou a recente libertação sob fiança antes do julgamento de alguns dos arguidos do caso das dívidas ocultas que lesaram o Estado moçambicano em cerca de dois mil milhões de euros.
"Hoje, alguns deles estão a sair da cadeia, pagando fortunas pela sua liberdade. De onde vem tanto dinheiro? Não será o mesmo das dívidas ocultas?", questiona Samo Gudo.
O debate prossegue esta quinta-feira (25.03), antes do posicionamento final das bancadas parlamentares.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)