Não é novo: líderes comunitários têm-se aliado aos insurgentes em Cabo Delgado, na sua maioria por medo de retaliação, afirma analista. Mas o que está a fazer o Governo para obter o monopólio de tão estratégica aliança?
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Pela proximidade que mantém com a população e pela sua influência, as lideranças locais são preponderantes para combater a insurgência em Cabo Delgado. Contudo, há muito que se lhe diga sobre a sua atuação ou reação.
Um estudo do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) de 2018 sobre as incursões armadas de homens não devidamente identificados até agora destaca duas fases da liderança local: a primeira, de uma certa resistência das lideranças islâmicas locais e dos setores conservadores; a segunda, de uma adesão por parte de setores mais marginalizados.
A par disso, o estudo indica diferenças: enquanto em Chiúre e Montepuez houve uma reação rápida por parte da administração local, em Mocímboa da Praia foi diferente porque havia uma forte penetração das lideranças do grupo no tecido social local. Além disso, a administração local tinha receio de interferir no assunto, sob pretexto de se tratar de algo interno das mesquitas.
Dada a sua importância, o especialista em paz e segurança do Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI), Calton Cadeado, entende que "o Governo tem uma responsabilidade muito grande, precisa de manter uma comunicação muito forte com as lideranças locais, mas significa por em risco essas lideranças, pois os insurgentes podem retaliar matando-os, como já está a acontecer. Mas alguns líderes colaboram com os insurgentes."
Mas Cadeado sugere o seguinte: "Só que o Estado não deve dar a entender que está com medo [dos insurgentes] ou que está a legitimar ou mostrar ao mundo que está com medo. Neste momento, o Estado está a correr contra o prejuízo".
Até que ponto a liderança local é merecedora da confiança popular?
Nos seus comícios em Cabo Delgado, o Presidente da República tem repetidamente apelado a população a ser ativa no combate a insurgência. Filipe Nyusi chegou inclusive a convidar líderes comunitários das regiões mais visadas pela ações da insurgência, em fevereiro passado, a participar de um Conselho de Ministros realizado extraordinariamente em Cabo Delgado, num contexto em que os radicais extremavam as suas incursões armadas.
A polícia também tem pedido a sua colaboração, particularmente no caso do recrutamento de jovens para as fileiras inimigas. E os líderes comunitários tem sido especialmente o alvo dos apelos das autoridades.
Contudo, há algumas particularidades que são naturalmente surdas aos discursos políticos. E são as que inviabilizam a colaboração desejada, alerta a ativista dos direitos humanos Fátima Mimbire: "O papel dos líderes poderia ser instrumental neste momento, no sentido de mobilizar das comunidades [contra a insurgência] e dar-lhes mais segurança, e sobretudo dando informação relevante ao Governo ao nível central sobre o que está a acontecer ao nível local."
Bispo de Pemba #explica situação humanitária em Cabo Delgado
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"Mas durante muito tempo, vimos que líderes comunitários mais do que atores relevantes na administração do território, desempenham um papel de vigilância, o que acaba esvaziando muito o seu papel, infelizmente só tem o papel de mobilização mais partidários", lembra a ativista dos direitos humanos.
Mimbire alerta ainda para uma situação onde os laços de confiança mostram-se frágeis: "Se neste momento não há uma relação de confiança entre as comunidades e os seus líderes, há-de ser, por um lado, porque muitos desses líderes são conotados como agentes partidários. E neste momento, pelo que temos estado a acompanhar, há uma ideia formada de que os ataques em Cabo Delgado, em certa medida, têm o patrocínio de individualidades da nossa elite dirigista, seja ao ao nível militar até ao nível governamental e político-partidário e isso pode estar a minar o estreitamento de alguma relação entre as comunidades e os lideres comunitários."
Medo desencadeia aliança com o inimigo
Em vídeos recentes publicados nas redes sociais viu-se a população a aplaudir os insurgentes aquando da sua passagem por uma aldeia. O que pode ser entendido à partida como um apoio aos atacantes é relativizado por especialistas em paz e conflito, que através da chamada "teoria do medo" explicam que se trata simplesmente de um modo de sobrevivência.
O pesquisador Calton Cadeado recorda que "no meio de uma guerra há dois lados a cometer violência. Muitas vezes os que aplaudem aliam-se às duas partes. A população aplica a teoria do 'fear factor', usar o medo para se proteger."
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.