Em entrevista à DW África, académico diz que a política de neutralidade de Moçambique no conflito Rússia-Ucrânia se deverá manter. "É uma posição pragmática", comenta Hilário Chacate.
A Ucrânia quer convencer Moçambique - que se absteve das três resoluções que foram a votos na Assembleia Geral da ONU desde a invasão, em 24 de fevereiro - a mudar a sua posição. Mas a política de neutralidade deverá manter-se, acredita o académico moçambicano Hilário Chacate.
Eleito como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU para 2023-2024, Moçambique procura fazer "novos amigos", mas também quer manter os que já tem, lembra em entrevista à DW África o especialista em Relações Internacionais, que vê como "pragmática" a posição do Governo de Maputo.
DW África: Moçambique tem mantido uma posição neutra relativamente ao conflito na Ucrânia. Espera alguma mudança, tendo em conta a pressão ucraniana que está a ser feita neste momento?
As duas guerras na Europa podem piorar
04:49
Hilário Chacate (HC): Penso que não. Não vislumbro a possibilidade de Moçambique mudar a sua posição de neutralidade face a conflito. Em primeiro lugar, porque Moçambique, desde que existe como Estado, se pautou por uma postura de não alinhamento. Além disso, a Constituição moçambicana estipula que a política externa do país visa manter as amizades que foi conquistando ao longo das suas quase cinco décadas de sua existência e alastrar os seus horizontes na busca de novas amizades.
Nesta ordem de ideias, é preciso entender que a Rússia é um Estado com relações muito salutares e cordiais [com Moçambique] desde o período da Guerra Fria. Os primeiros a intervir [na província de] Cabo Delgado para tentar combater o terrorismo foram os russos, com a vinda dos seus mercenários.
DW África: Mas será que Moçambique, que neste momento enfrenta uma insurgência no norte do país, poderá abster-se eternamente perante uma anexação ilegal? Não poderá haver uma mudança de posição face à pressão ucraniana?
HC: Eu tenho muitas dúvidas, porque Moçambique está a sofrer pressão de todos os lados. Neste momento, o Ocidente é um ator muito relevante, sobretudo nesta questão do conflito em Cabo Delgado. A União Europeia (UE) está presente no país, dando formações e assistência às Forças de Defesa e Segurança (FDS) moçambicanas para ajudar a combater o terrorismo, e já faz pressão há algum tempo. Mas Moçambique encontra-se numa posição extremamente delicada porque, ao mesmo tempo, precisa da Rússia em várias áreas. E também tem relações históricas com este país, com significado simbólico, que não quer colocar em causa. Durante muito tempo, quando Moçambique precisou, a União Soviética esteve cá a apoiar.
[É por isso] que o país africano se encontra numa posição extremamente delicada e não consegue assumir posições. Prefere, por isso, adotar o posicionamento de que a Ucrânia a Rússia devem resolver os seus diferendos através do diálogo. Parece-me que esta será a posição permanente de Moçambique, a menos que aconteça algo muito forte nos bastidores diplomáticos, que force o país a mudar de posição.
DW África: Aliás, o primeiro-ministro Adriano Maleiane disse na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, que a abstenção moçambicana na condenação da agressão russa à Ucrânia serve os interesses do país. Concorda?
HC: Claramente, o posicionamento de neutralidade permite a Moçambique negociar com ambas as partes. Permite ao país apelar ao diálogo, não condenando nem a Rússia, nem a Ucrânia. A partir do momento em que condena um dos atores, poderá beliscar as suas relações com esse Estado.
DW África: Concorda com a ideia de Moçambique como "mediador", como disse o primeiro-ministro moçambicano em Nova Iorque?
HC: Eu penso que sim. Moçambique sempre assumiu um papel de mediação, pelo menos na região da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC). Um dos exemplos foi o conflito em Madagáscar, quando [Andry] Rajoelina chegou ao poder através de um golpe de Estado. Houve um momento de tensão entre os diferentes atores políticos e quem mediou esse processo foi o ex-Presidente [Joaquim] Chissano.
O segundo exemplo é a contenda entre a Tanzânia e o Malawi, uma disputa que tem a ver com o Lago Niassa e que também está a ser mediada pelo Presidente Chissano. A postura de Moçambique de não querer assumir posições deve ser vista nesta lógica de que poderá intervir como um ator relevante, para tentar aproximar as partes a encontrar uma saída.
DW África: Portanto, não concorda com as críticas dos partidos da oposição, da RENAMO e do MDM, que acusam o Governo de Moçambique de "insensibilidade" em relação ao povo ucraniano?
HC: Os Estados são atores que agem em função dos seus interesses e calculam os custos e benefícios das suas ações. É nesta lógica que eu entendo que Moçambique está a calcular minuciosamente os passos que está a dar. E, em função disso, vai tomando uma posição pragmática.
Rússia - Ucrânia: Uma cronologia das relações que levaram a guerra à Europa
Ao invadir a Ucrânia, o Presidente Vladimir Putin foi acusado pelos países ocidentais de provocar uma guerra na Europa. Veja aqui a cronologia dos acontecimentos que levaram à guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
Foto: UMIT BEKTAS/REUTERS
2004
O candidato pró-Rússia, Viktor Yanukovich (na foto), é declarado Presidente, mas alegações de fraude eleitoral provocam um movimento de protesto. Conhecida como a Revolução Laranja, a iniciativa força uma nova votação, que resulta na eleição do pró-ocidental Viktor Yushchenko.
Foto: Reuters/T. Makeyeva
2005
Um ano mais tarde, o novo Presidente, Viktor Yushchenko, promete retirar a Ucrânia da órbita de Moscovo e conduzi-la em direção à NATO e União Europeia. Durante a sua campanha em 2004, Yushchenko sofreu uma tentativa de assassinato por envenenamento que o deixou desfigurado. Desde então, fez uma recuperação física total.
Foto: picture-alliance/dpa/Sputnik/A. Vitvitsky
2008
Na cimeira de Bucareste, a NATO concorda em iniciar o processo de adesão da Ucrânia e da Geórgia. "Acordámos hoje que estes países se tornarão membros da NATO", lê-se na declaração da cimeira. Na mesma cimeira, o Presidente russo, Vladimir Putin (na foto), avisou que as relações com o Ocidente dependeriam do respeito pelos interesses do seu país.
Foto: Vladimir Rodionov/dpa/picture-alliance
2010
Viktor Yanukovich derrota Yulia Tymoshenko nas presidenciais e torna-se chefe de Estado. As eleições foram consideradas justas por observadores internacionais. Uma semana antes da assinatura do acordo com a UE, Yanukovich suspende o processo e anuncia que a Ucrânia prefere juntar-se à Rússia na União Aduaneira Eurasiática.
Foto: Reuters
2013 e 2014
A decisão de Yanukovich gera uma onda de protestos de apoiantes da integração europeia. O movimento chamado "Euromaidan", por centrar as manifestações na Praça Maidan, em Kiev, tornam-se violentos. Dezenas de manifestantes são mortos, mas o Presidente acaba por ser retirado do Governo, exilando-se na Rússia.
Foto: Tomas Rafa
2014 - anexação da Crimeia
Em março, a Rússia anexa a península da Crimeia, no sudeste da Ucrânia.
Em abril, separatistas com apoio de Moscovo declaram a independência das "repúblicas" de Luhansk e de Donetsk, na região oriental ucraniana do Donbass, iniciando uma guerra que provoca 14 mil mortos em oito anos.
Foto: Imago Images
2019
O ex-ator e comediante Volodymyr Zelensky é eleito Presidente da República em 21 de abril e promete pôr fim ao conflito no leste da Ucrânia. Em 2021, apela ao novo Presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, para apoiar a adesão da Ucrânia possa à NATO, colocando o país em novamente nos trilhos rumo à Europa.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Sivkov
2021 - Março até Novembro
O Governo russo estaciona tropas perto da fronteira da Ucrânia, alegando treinos miltares.
A Ucrânia acusa Putin de ter concentrado 100 mil tropas e armamento pesado nas suas fronteiras, o que motiva um pedido de explicação dos EUA ao Kremlin. Putin acusa o Ocidente de exacerbar tensões "entregando armas modernas a Kiev e conduzindo exercícios militares provocatórios" no Mar Negro.
Foto: Maxar Technologies via REUTERS
2021 - Dezembro
Biden adverte que a Rússia será alvo de sanções económicas duras se invadir a Ucrânia.
Moscovo divulga as suas exigências ao Ocidente: tratados a proibir a adesão da Ucrânia e da Geórgia à NATO, o estabelecimento de bases militares no leste e a retirada de tropas aliadas da Roménia e da Bulgária, num regresso à situação anterior a 1997.
Foto: Brendan Smialowski/AFP
2022 - 10 de Fevereiro
Tropas russas e bielorrussas iniciam dez dias de exercícios de combate próximo da fronteira da Bielorrússia com a Ucrânia. A presença destas tropas gera mais preocupação na comunidade internacional, que vê os exercícios como um posicionamento estratégico das tropas russas, dando-lhes mais um ponto de entrada na Ucrânia.
Foto: Alexander Zemlianichenko/AP Photo/picture alliance
2022 - 21 de Fevereiro
Os líderes das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Luhansk pedem a Putin para as reconhecer como Estados independentes. Putin assina os decretos em que a Rússia reconhece a independência das regiões e ordena ao exército russo que envie uma missão de "manutenção da paz" para os territórios no leste da Ucrânia.
A NATO acusa Moscovo de fabricar um pretexto para invadir a Ucrânia.
Foto: Alexei Alexandrov/AP Photo/picture alliance
2022 - 22 de Fevereiro
Zelensky pede ao Ocidente "medidas de apoio claras e eficazes", assegura que os ucranianos "não vão ceder uma única parcela do país" e responsabiliza a Rússia por tudo o que acontecer.
Olaf Scholz, chanceler da Alemanha, diz que tomou medidas para interromper a certificação do gasoduto Nord Stream 2, numa decisão saudada pela UE e pelos EUA.
Foto: Clemens Bilan/Getty Images
2022 - 24 de Fevereiro
Tropas russas entram na Ucrânia e muitos locais são atingidos por mísseis. Vladimir Putin pronuncia um discurso no qual afirma que apenas alvos militares serão atingidos. Mas relatos de civis feridos e vídeos de ataques em zonas urbanas enchem as redes sociais. Várias baixas são reportadas nas primeiras horas do conflito.
Foto: Ukrainian President s Office/Zuma/imago images
2022 - 24 de Fevereiro
Edifícios residenciais civis atingidos durante a operação militar do Kremlin contra a Ucrânia. Relatos, vídeos e pedidos de ajuda surgem nas redes sociais, expondo vários cenários em que zonas urbanas e civis foram apanhados na destruição dos ataques militares.
Foto: UMIT BEKTAS/REUTERS
2022 - 24 de fevereiro
Muitas pessoas utilizaram as estações de metro em Kiev como abrigo durante a operação militar do Kremlin. As sirenes contra ataques aéreos soaram pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial. As estações encheram-se de pessoas à procura de guarida.
Foto: Zoya Shu/AP/dpa/picture alliance
2022 - 24 de Fevereiro
Protestos contra a iniciativa militar do Kremlin surgem em vários países, incluindo na Rússia. Na foto, uma manifestante russa é detida pela polícia enquanto segura um cartaz que diz "Não à guerra!".