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CinemaAlemanha

Guiné-Bissau na Berlinale: "É no mato que a luta acontece"

Cristiane Vieira Teixeira (Berlim)
23 de fevereiro de 2024

Filme "Resonance Spiral" mostra trechos dos arquivos históricos da Guiné-Bissau, promove o debate sobre a igualdade de género e mostra os impactos de um projeto sustentável para a comunidade de Malafo.

Cena do filme "Resonance Spiral", de Filipa Cérsar e Marinho de Pina
Mulheres da comunidade de Malafo ouvem áudios dos arquivos históricos da Guiné-Bissau em cena do filme "Resonance Spiral"Foto: Jenny Lou Ziegel/Filipa César/Marinho de Pina

Será no sábado (24.02) a última apresentação de "Resonance Spiral" ("Espiral de Ressonância", na tradução literal para o português), da realizadora portuguesa Filipa César e do artista transdisciplinar de origem guineense Marinho de Pina, na 74ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim

O filme documenta o processo de construção do prédio Abotcha, com a participação ativa da comunidade de Malafo, para abrigar a mediateca que guarda os arquivos históricos da Guiné-Bissau.

"Precisávamos de um sítio para colocar os arquivos e continuar essas práticas de refletir sobre a presença desses arquivos hoje, os ensinamentos e foi aí que começou a ideia de criar um espaço," recorda Filipa César.

Também mostra "os tipos de práticas que lá acontecem", como workshops e outras atividades.

O prédio foi construído com materiais locais, como terra e madeira extraídos localmente, e métodos tradicionais e sustentáveis.

"A construção tradicional é tradicionalmente sustentável pela forma como ela se desenvolve: enfrentando crises e encontrando soluções para dar resposta a essas crises. Por exemplo, imagine, construíram e depois vem muita chuva e alga tudo. Então dizem, 'vamos levantar o chão'.  Da próxima vez, a chuva já não afeta o chão," explica o também arquiteto Marinho de Pina.

Foram replantadas cerca de 270 árvores na região. A ideia é dar algo à natureza em troca daquilo que dela se retira.

"Para estar num espaço agradável e ouvir essa música matinal, é preciso aves. Os pássaros precisam das árvores para fazer o seu abrigo. Então, temos de ter cuidado uns com os outros. Eles oferecem música e nós não vamos destruir o seu habitat," pondéra.

A sustentabilidade está também no uso dado ao Abotcha. A mediateca tem um conceito amplo:

"São diferentes conceitos de média: mediação, médium. Não é só a tecnologia, a película, os computadores. Mas também contar estórias, fazer teatro, cantar são todas formas de mediação," relata Filipa César, .

O Abotcha abriga também uma "biblioterra", atividades da comunidade, serve de sala de aulas para as crianças ou ambiente para workshops. Um deles foi realizado durante a época da colheita do caju e direcionado às mulheres de Malafo. "Na Guiné-Bissau, quem faz a vida acontecer são as mulheres," pontua Marinho de Pina.

Filme "Resonance Spiral" divulga trechos dos arquivos históricos da Guiné-Bissau na BerlinaleFoto: Jenny Lou Ziegel/Filipa César/Marinho de Pina

"Nada cai do céu, fora chuva"

"É no mato que a luta acontece," diz uma senhora da comunidade de Malafo. A cena a seguir mostra as mulheres a ouvir um áudio da ex-combatente e política do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Carmen Pereira, datado de 1976. 

"São muitas as dificuldades que as mulheres enfrentam neste momento de reconciliação nacional no nosso país. Uma das dificuldades mais graves é o problema do analfabetismo," afirma Pereira num trecho. Ao final, uma das ouvintes assume a fala.

"O discurso foi um gatilho e o facto de haver um espaço seguro onde pudesse se manifestar ajudou imenso. Quando ela falou, abriu a caixa de pandora. Alguns maridos sairam de fininho," conta-nos Marinho de Pina.

Na sequência, as mulheres de Malafo escutam a voz de Amílcar Cabral. Na gravação de 1970, ele que se refere às suas "companheiras de luta", recorda e explica a histórica desigualdade de género no país e reconhece o papel primordial da mulher como "força principal” da sociedade.

"Não queremos que as nossas filhas sejam escravas de ninguém,” afirma Cabral. Mas para isso, enfatiza, "é preciso lutar”. "Nada cai do céu, fora chuva,” conclui o líder político, acrescentando que o sonho do seu partido é a igualdade entre homens e mulheres.

Com "Resonance Spiral", os realizadores divulgam os arquivos históricos, mas também abrem o debate sobre as contradições e incoerências das sociedades.

O próximo passo da dupla será a criação de uma "sonoterra" na comunidade de Malafo.

"É um estúdio de som para gravação e também para escuta," adianta Filipa César. Um local para "contar histórias às crianças, [arquivar] outros tipos de arte, recuperar canções antigas," acrescenta De Pina.

Instabilidade na Guiné-Bissau

A Guiné-Bissau encontra-se num momento marcado pela instabilidade política e crise institucional, com muitas instituições disfuncionais – como é o caso do Parlamento, da Comissão Nacional de Eleições e mesmo do Supremo Tribunal de Justiça.

Recentemente, o antigo primeiro-ministro Nuno Nabiam renunciou ao cargo de conselheiro do Presidente Umaro Sissoco Embaló, por carta.

Também é visível a crise interna nos partidos Movimento para Alternância Democrática (MADEM-G15) e Partido da Renovação Social (PRS).

Para Marinho de Pina, o país sempre esteve à mercê da "luta dos políticos pelo poder", que ele considera uma herança colonial: "Cinquenta anos depois da independência, para teres um bom trabalho na Guiné-Bissau e seres reconhecido, tens que falar como branco, vestir-se como branco e viver como branco."

"Então, basicamente o que mudou são as pessoas que estão a dirigir o país, porque a mentalidade oprimida e orientada erradamente, esquecendo-se do que existe à nossa volta continua colonizada," lamenta.

Welket Bungué: Uma estrela em ascenção

14:23

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PALOP na 74ª Berlinale

O filme documental "As noites ainda cheiram a pólvora", do realizador moçambicano Inadelso Cossa, no qual traz uma abordagem pessoal de memórias da Guerra Civil Moçambicana, teve a sua última apresentação na Berlianle na tarde desta sexta-feira (23.02).

Ele recorre a material de arquivo mas também a relatos de sobreviventes, na aldeia de sua avó, para registar este período marcante da história do seu país.

Também hoje decorreu a última apresentação de "À quand l'Afrique? ("Qual o caminho para África?" na tradução literal para o português), do diretor congolês David-Pierre Fila - rodado em Angola, Congo e Camarões - e que aborda a questão dos recursos naturais no continente africano.

Os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) estiveram representados ainda com a participação do ator e realizador luso-guineense Welket Búngue no evento AfroBerlin, que promove a indústria cinematográfica africana.

Berlinale: Guineenses "não mereciam isso", diz Welket Bungué

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