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Guiné-Bissau: "Trabalho infantil é quase institucionalizado"

Marta Cardoso
12 de junho de 2020

No Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, a DW África faz uma análise profunda sobre a exploração de crianças guineenses. Durante a pandemia de Covid-19, as autoridades estão a tentar tirar crianças talibés das ruas.

Crianças talibés pedem comida em Rufisque, SenegalFoto: DW/K. Gomes

Esta sexta-feira (12.06), assinala-se o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil. Na Guiné-Bissau, quase 40% das crianças entre os 5 e os 14 anos trabalham, segundo os últimos dados disponíveis divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em 2014.

O cenário de crianças a vender na rua é visível em todo o país, mas Maimuna Sila, fundadora da Fundação Ana Pereira e antiga presidente do Instituto da Mulher e da Criança (IMC), alerta que o problema envolve outras questões.

"Há aquelas crianças que são obrigadas a ir, por exemplo, para as ruas vender amendoim ou manga. Muitas das vezes, elas é que garantem o principal rendimento das famílias. E quando algo corre mal [nas vendas], as crianças são submetidas a maus-tratos. Tudo isso é preciso ser acautelado quando falamos de trabalho infantil", sublinha.

Outro tipo de trabalho infantil é a mendicidade, algo que, para a advogada, pode ser considerado uma tradição nefasta, mas que não tem mau fundo: "As pessoas não fazem isso de forma deliberada para fazer mal às crianças. Existe a crença de que se a criança conseguir sobreviver a essas adversidades, vai tornar-se num adulto consciente das dificuldades da vida", explica.

Trabalho é discriminatório

Entretanto, Maimuna Sila defende que o trabalho infantil não deve ser banalizado e que a sociedade deve ser sensibilizada contra isso. "O trabalho infantil aqui na Guiné-Bissau é quase institucionalizado. É feito como algo normal e é discriminatório. Quando falamos em trabalho infantil, a preponderância é maior nas meninas do que propriamente nos rapazes", assegura.

A fundadora da Fundação Ana Pereira, que trabalha em parceria com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), diz que isso é claro quando o assunto é trabalho doméstico. "É trabalho infantil também e há exploração aí. E infelizmente não se fala, porque nós temos isso como algo normal, daí eu falar na institucionalização do trabalho infantil", explica.

Trabalho infantil evidencia discriminação e desigualdade de géneroFoto: DW/B. Darame

A guineense conta que, com o trabalho, as meninas não têm tempo para outras tarefas, como ler. "De manhã, está com as lides domésticas para poder garantir o almoço, à tarde vai regar para garantir que o que tiver semeado há de florescer para depois levar para vender. Ou seja, ela passa o dia inteiro super ocupada. O rapaz sai da escola e vai jogar à bola, vai brincar. Existe essa discriminação", exemplifica.

Com a pandemia do novo coronavírus, que levou ao fecho das escolas, houve uma sobrecarga deste trabalho doméstico nas meninas e também um aumento da violência de género. A Fundação Ana Pereira criou uma plataforma online, a Bioksan, que pretende precisamente sensibilizar a população para estas questões em tempos de pandemia, através de vídeos de animação e outras atividades.

Exploração de crianças talibés

Outra forma de trabalho infantil muito presente na sociedade guineense é a vivenciada pelas crianças talibés, explica Maimuna Sila. "As crianças talibés que são levadas para as escolas corânicas, mas que depois para se autossustentarem e sustentarem os seus mestres têm que ir fazer de pedintes nas ruas. Nós temos isso aqui. E isso é considerado tráfico de seres humanos", alerta.

A advogada esclarece que muitos pais sem condições financeiras mandam os filhos "para criação" nessas famílias um pouco mais abastadas acreditando que lá, para além de terem acesso à educação, vão ser formados como "homens". "Mas a verdade é que acabam por ser explorados, acabam por ter de fazer trabalho quase que de uma empregada doméstica", admite Maimuna Sila.

Cerca de 30% das crianças que mendigam em Dacar são originárias da Guiné-BissauFoto: DW/K. Gomes

A ex-presidente da Instituto da Mulher e Criança (IMC) crê que a solução tem de ser estatal. "Eu acredito que se fossem construídas escolas corânicas, as verdadeiras madraças, e que fosse algo institucional do próprio Governo, controlado pelo Governo, onde as crianças se dedicassem ao ensino corânico numa parte do dia e ao ensino laico noutra parte do dia, onde tivessem onde dormir, onde tivessem onde comer, nós retiraríamos esse motivo que leva os mestres corânicos a colocarem as crianças a mendigar", argumenta.

"O Estado deve ser o principal interessado em ter crianças saudáveis e com uma boa educação, porque essas crianças serão o reflexo da sociedade no futuro", conclui.

Maria Vitória Correia, atual presidente do IMC, afirma que "há muitos anos" estão a ser feitos esforços para tentar "fazer o casamento entre a escola corânica e a escola oficial". O Ministério da Educação guineense já inseriu a língua árabe no ensino laico, com o intuito de que as crianças passem menos tempo na escola corânica. 

Resposta durante a pandemia

A presidente do IMC afirma que "o trabalho infantil está inserido no plano de emergência [para cobrir a situação do novo coronavírus]" que está a ser desenvolvido pelas autoridades. Ainda não existe um plano concreto, mas já está a ser feito um trabalho direcionado para as crianças talibés.

"Aquela mendicidade já está a ser reduzida, porque a própria Guarda Nacional e a Polícia Judiciária estão envolvidas em tirar as crianças das ruas e para que permaneçam na casa dos mestres [corânicos]", explica.

Mas admite que há excesso de crianças em casa dos professores corânicos e em situação de vulnerabilidade. "Nós não podemos aceitar isso. Eu acho que, para a semana, vamos [começar] a fazer a reinserção dessas crianças, com o apoio do UNICEF, nas famílias. Assim, o trabalho infantil naquela vertente mais perigosa das crianças na rua a pedirem esmola vai diminuir", afirma.

Legislação especial

Maria Vitória Correia informa ainda que o IMC, juntamente com a Comissão Nacional de Prevenção do Trabalho Infantil da Guiné-Bissau, está a trabalhar no sentido de definir a idade mínima para admissão de emprego.

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Para a advogada Maimuna Sila, criar uma legislação especial para o trabalho infantil, que ainda não existe, é por si só ineficiente. "Imaginemos que temos uma lei que diz que crianças com menos de 12 anos não podem vender na rua. E depois encontramos uma criança de dez anos a vender na rua. O que é que vamos fazer? Quem é que vai fiscalizar isso? Ainda que haja quem fiscalize, essa entidade encontra essa criança e vai levar para onde? Não existem muitos centros de acolhimento. Só aqui em Bissau existe um único centro de acolhimento, que é da AMIC [Associação dos Amigos da Criança]", analisa.

"E será que isso é solução, acolher essa criança? Depois quem é que vai prover o sustento dessa criança? Não temos nenhuma entidade encarregue disso. E, depois, aquela família que pôs aquela criança a vender porque era carente, vai continuar carente. Então, se calhar, eu não olharia mais para a questão legislativa, mas mais para a questão da sensibilização", avalia a fundadora da Fundação Ana Pereira.

Maimuna Sila acredita que a resposta passa por capacitar os adultos das famílias pobres, aumentando-lhes os rendimentos, e assim retirar a necessidade de colocarem as crianças a trabalhar.

Crianças resgatadas no estrangeiro

O problema das crianças talibés estende-se para além das fronteiras, em países como o Mali e a Guiné-Conacri. O Senegal é o principal destino das crianças guineenses, conta Laudolino Medina, secretário-executivo da AMIC.

"Há um estudo [citado pelo UNICEF] que aponta que cerca de 30% das crianças que mendigam nas ruas da grande região de Dacar são originárias da Guiné-Bissau. Numa amostra de cerca de 6.700 crianças, 30% eram crianças talibés originárias da Guiné-Bissau", diz.

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A organização não-governamental gere atualmente dois centros de acolhimento de crianças vulneráveis: um em Bissau, que acolhe principalmente meninas vítimas de violência baseada no género", e outro na região de Gabú, que acolhe as crianças talibés.

Desde 2005, a AMIC trabalha com uma rede internacional de proteção à criança composta por 15 países da África Ocidental, mais a Mauritânia. Juntos, já conseguiram resgatar cerca de duas mil crianças em situação de vulnerabilidade.

A Guiné-Bissau é um bom exemplo no que toca ao acompanhamento pós-resgate. "Felizmente, a Guiné-Bissau é dos raros países que, através de nós, AMIC, no ato de entrega das crianças [às famílias], conseguimos que o ato seja testemunhado pelo tribunal regional de Gabú que responsabiliza as famílias quanto à guarda das crianças, para não as enviar de novo para este tipo de exploração", conta o secretário-executivo da AMIC.

"E, nós, enquanto organização, responsabilizamo-nos a fazer o seguimento da criança. Se uma vez nas ações de seguimento não encontramos as crianças, automaticamente informamos a instância judicial que pode incorrer um processo contra a família. E quando nós começámos a trabalhar com esta estratégia, diminuiu muito o caso de crianças reincidentes. É quase nula a percentagem das crianças reincidentes", explica Laudolino Medina.

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