Guterres: Genocídio do Ruanda "não foi inevitável"
Lusa
7 de abril de 2022
Secretário-geral da ONU assinala os 28 anos do genocído no Ruanda com uma certeza: "Temos sempre uma escolha: escolher a humanidade em vez do ódio; compaixão em vez da crueldade; coragem em vez da complacência".
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O secretário-geral das Nações Unidas recordou esta quinta-feira (07.04) o genocídio no Ruanda, considerando que o seu início, faz hoje 28 anos, "não foi nem acidente nem inevitável".
"O genocídio contra os Tutsi no Ruanda não foi um acidente nem inevitável", assinalou António Guterres numa publicação na rede social Twitter.
"Ao recordarmos o derramamento de sangue de há 28 anos, temos de reconhecer que temos sempre uma escolha: Escolher a humanidade em vez do ódio; compaixão em vez da crueldade; coragem em vez da complacência", acrescentou o secretário-geral da ONU.
O genocídio no Ruanda começou a 7 de abril de 1994, após o assassínio no dia anterior dos Presidentes do Ruanda, Juvénal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos da etnia hutu, quando o avião em que se deslocavam foi abatido sobre Kigali.
A violência que então irrompeu provocou a morte de cerca de 800.000 tutsis e hutus moderados em cerca de cem dias, constituindo-se como um dos piores massacres étnicos da história recente.
O papel de França
Vários responsáveis no genocídio têm vindo a ser acusados judicialmente e julgados num Tribunal Penal Internacional constituído para o efeito, mas o apuramento das responsabilidades não se esgota nos processos individuais.
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A questão do papel da França antes, durante e depois do genocídio do Tutsis no Ruanda tem sido um tema quente há anos e levou mesmo ao rompimento das relações diplomáticas entre Paris e Kigali, entre 2006 e 2009.
A França abriu ao público em abril de 2021 milhares de documentos arquivados relativos à situação no Ruanda entre 1990 e 1994, pertencentes ao ex-presidente francês François Mitterrand e ao seu então primeiro-ministro, Edouard Balladur.
Vários desses documentos, em particular telegramas diplomáticos e notas confidenciais, serviram de base a um relatório sobre o papel de França no Ruanda entre 1990 e 1994, apresentado por uma comissão de historiadores no final de março.
O "relatório Duclert" faz uma retrospetiva do envolvimento francês nos acontecimentos desses quatro anos decisivos, que levaram ao genocídio de 1994.
Os historiadores sublinharam, em particular, a responsabilidade do então chefe de Estado socialista e da sua equipa particular, que ignorou reiteradamente as várias advertências sobre os riscos de genocídio. O documento ilibou, no entanto, a França de cumplicidade no massacre.
"Silêncio durou demasiado tempo"
Em maio de 2021, o Presidente francês, Emmanuel Macron, deslocou-se ao Ruanda, numa visita apresentada como o "passo final na normalização das relações" entre os dois países, após mais de 25 anos de tensões relacionadas com o papel desempenhado pela França no genocídio.
Num discurso então proferido no memorial aos mortos, em Kigali, Macron reconheceu responsabilidades da França no genocídio e considerou que o "silêncio sobre o apuramento da verdade" durou "demasiado tempo".
A França "não foi cúmplice", mas "durante demasiado tempo prevaleceu o silêncio sobre o apuramento da verdade", disse. "Ao estar, com humildade e respeito, ao vosso lado, neste dia, venho reconhecer as nossas responsabilidades", disse ainda.
"Reconhecer este passado é também, e acima de tudo, continuar o trabalho da justiça, comprometendo-nos a assegurar que ninguém suspeito de crimes de genocídio possa escapar", acrescentou.
A França "tem um dever": "Enfrentar a história e reconhecer o sofrimento que ela infligiu ao povo ruandês, permitindo que o silêncio prevalecesse durante demasiado tempo sobre o apuramento da verdade", disse Macron.
"Ao querer evitar um conflito regional ou uma guerra civil, estava de facto ao lado de um regime genocida. Ao ignorar os avisos dos observadores mais lúcidos, a França arcou com uma responsabilidade esmagadora numa espiral que levou ao pior, apesar de estar precisamente a tentar evitá-lo", prosseguiu.
O Presidente ruandês, Paul Kagame, que liderou a contraofensiva Tutsi que pôs fim ao genocídio, saudou no mesmo evento em maio de 2021 o "importante passo em frente no sentido de uma compreensão do que aconteceu".
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.