Será que os angolanos podem confiar nos seus tribunais? Jurista Serrote Simão Hebo admite que há uma quebra de confiança no setor e sublinha que é necessária uma "independência, de facto, dos tribunais" no país.
Também o Presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, tem estado associado a vários polémicas judiciais, sendo que a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), principal partido da oposição, já pediu a sua demissão.
Em entrevista à DW, o jurista Serrote Simão Hebo diz que há, de facto, uma quebra de confiança no setor, e defende que isso pode estar a ser motivado pelas tentativas de influência política nos magistrados.
DW África: Os angolanos podem confiar nos seus tribunais?
Serrote Simão Hebo (SSH): A confiança decaiu significativamente por parte dos cidadãos angolanos. Decaiu drasticamente porque o sistema, de um modo geral, não está a corresponder à expectativa. Está efetivamente a colocar em causa a confiança e a expectativa jurídica dos cidadãos. Quando isso ocorre, seguramente nenhum cidadão se vai rever neste tipo de sistema, o que quer dizer que é urgente e que se deve olhar para estas situações. Quer os tribunais cooperantes, que têm responsabilidade acrescida, têm de ter uma postura mais adequada; quer o próprio Executivo deve proporcionar as condições necessárias para que os tribunais funcionem na sua plenitude.
DW África: A abertura do ano judicial em Angola foi adiada sem nova data. Assistimos também ao afastamento da presidente do Tribunal de Contas. O que se está a passar na Justiça angolana?
SSH: Há durante este período de tempo uma discussão muito grande relativamente à justiça perante o sistema judicial angolano. O sistema tem-se estado a colocar em causa face a uma série de denúncias e também de reclamações - quer por parte dos oficiais de diligências de Justiça angolanos, quer por parte da população do modo geral, assim como por parte dos magistrados judiciais. Na verdade, o que acontece é o seguinte: estes órgãos dos tribunais superiores têm responsabilidades acrescidas na administração da Justiça angolana. Entretanto, para que se possa ter uma Justiça no país, é preciso que estes tribunais exerçam o seu papel nos termos da lei e da Constituição. O que acontece é que há situações em que há ingerência política no sistema judicial.
A primeira ingerência resulta por força do decreto 69/2021, de 16 de março. É um decreto que atribui aos magistrados - quer do Ministério Público, quer judicial - naqueles processos em que há envolvimento de bens vindos do erário público e que venham a trabalhar nestes processos, [o direito] a ter efetivamente 10% do valor. Este decreto é um elemento estranho ao sistema judicial e este elemento estranho, até certo ponto, compromete também o próprio sistema, porque o Estado, ao trazer este decreto, está aqui, por um lado, a intervir diretamente no sistema judicial e, por outro lado, está a criar uma situação de instabilidade no sistema judicial. Magistrados dos tribunais provinciais e também das comarcas não poderão julgar estes processos, o que quer dizer que estes não terão acesso a essas percentagens, o que já cria uma disparidade muito grande e um descontentamento muito forte ao nível dos magistrados judiciais.
DW África: De que forma é que se pode reformar o sistema judicial em Angola? O que é preciso fazer?
SSH: Precisamos de uma independência, de facto, dos tribunais. Por outro lado, é necessário que se estabeleçam as condições necessárias. Essas condições comprometem o próprio sistema judicial. Por outro lado, a forma da eleição dos magistrados também tem de se colocar muito em conta, porque hoje leva-se muito em consideração a confiança política. É preciso que aquele que, de facto, seja um magistrado judicial preencha meramente os requisitos legais. Não se pode olhar para a questão político-partidária. Nós tivemos o exemplo da presidente do Tribunal Constitucional [Exalgina Gambôa] que vinha do bureau político do MPLA e que depois renunciou à militância.
Julgamento dos 15+2 em imagens
Foi um julgamento envolto em polémica. 17 ativistas angolanos foram condenados a entre 2 e 8 anos de prisão por atos preparatórios de rebelião. Os críticos falam em "farsa judicial". Veja aqui momentos-chave do processo.
Foto: picture-alliance/dpa/W. Kumm
Julgamento polémico
Os 15+2 ativistas angolanos, acusados de atos preparatórios de rebelião, foram condenados a entre 2 e 8 anos de prisão efetiva. A defesa e ativistas de direitos humanos denunciam que o processo foi marcado por várias irregularidades. O julgamento começou logo com protestos, a 16 de novembro. Um ativista escreveu na farda prisional "Recluso do Zédu". Observadores internacionais ficaram à porta.
Foto: DW/P.B. Ndomba
#LiberdadeJa
Antes e durante o julgamento, foram muitos os pedidos de "liberdade já!" para os ativistas angolanos. Essas foram também as palavras de ordem de uma campanha nas redes sociais pela libertação dos jovens a que se associaram músicos, escritores, ativistas e muitos outros cidadãos de dentro e fora de Angola.
Foto: Reuters/H. Corarado
"Justiça sem pressão"
Fora do tribunal, um grupo de manifestantes jurou acompanhar o julgamento dos 15+2 até ao fim. Vestiram-se a rigor com t-shirts brancas de apoio ao sistema judicial angolano, com os dizeres "Justiça sem Pressão" - "Estamos aqui a favor da Justiça, visto que Angola é um Estado soberano e que os tribunais têm o seu papel, com o qual nós estamos solidários", disse um dos manifestantes.
Foto: DW/P. Borralho
Irregularidades no processo
Em dezembro, os ativistas enviaram uma carta ao Presidente angolano onde apontavam irregularidades no processo. Os jovens queixavam-se, por exemplo, das demoras, da falta de acesso ao processo por parte da defesa antes do início do julgamento e da impossibilidade de manter contato visual com a procuradora Isabel Nicolau (na foto). Eram ainda denunciados casos de agressão física e psicológica.
Foto: Ampe Rogério/Rede Angola
Dois dias a ler o livro de Domingo da Cruz
"Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura". É este o título do livro escrito pelo ativista Domingos da Cruz, inspirado no livro "Da Ditadura à Democracia", do pacifista norte-americano Gene Sharp. Segundo a acusação, era este o manual dos ativistas para preparar uma rebelião. O livro foi lido na íntegra durante dois dias no Tribunal de Luanda.
Foto: DW/Nelson Sul D´Angola
"Governo de Salvação Nacional" é "embuste"
Dezenas de personalidades angolanas integram uma lista, divulgada online, de um "Governo de Salvação Nacional". Esse seria um Executivo que assumiria o poder em Angola após a rebelião pensada pelos ativistas, segundo a acusação. Vários declarantes faltaram à chamada e várias sessões tiveram de ser adiadas. Um dos declarantes, Carlos Rosado de Carvalho, disse que o suposto Governo era um "embuste".
Foto: DW/P. Borralho
Prisão domiciliária
A 18 de dezembro, 15 ativistas, detidos desde junho, passaram ao regime de prisão domiciliária. Laurinda Gouveia e Rosa Conde permaneceram em liberdade condicional. O tribunal autorizou os detidos a receber visitas de familiares e amigos. No entanto, não foi permitido qualquer contato com membros do "Movimento Revolucionário" e do "Governo de Salvação Nacional".
Foto: DW/P. Borralho Ndomba
"Este julgamento é uma palhaçada"
Numa das sessões do julgamento, os ativistas levaram vestidas t-shirts com autocaricaturas como palhaços. Nito Alves disse em tribunal que o julgamento era uma palhaçada. Foi julgado sumariamente por injúria e condenado a 6 meses de prisão efetiva. Ativistas alertam que o estado de saúde de Nito Alves é grave e que Nito foi transportado numa maca para o tribunal de Luanda para ouvir a sentença.
Foto: Central Angola 7311
Nuno Dala em greve de fome
Como forma de reinvindicar o acesso a contas bancárias e entrega de pertences, Nuno Dala entrou em greve de fome a 10 de março. Gertrudes Dala, irmã do ativista, lamentou a reação da sociedade civil e a defesa alertou para a situação financeiramente "delicada" da família. Outros ativistas também passaram por dificuldades durante a prisão domiciliária.
Foto: DW/P.B. Ndomba
Ativistas são condenados
O tribunal de Luanda condenou, a 28 de março, os 17 ativistas angolanos. Domingos da Cruz, tido como "líder", deverá cumprir 8 anos e 6 meses de prisão efetiva. Luaty Beirão foi condenado a 5 anos e 6 meses. Rosa Conde e Benedito Jeremias foram condenados a 2 anos e 3 meses de prisão. Os restantes foram condenados a 4 anos e 6 meses. A defesa e o Ministério Público vão recorrer da decisão.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Juliao
"Dia triste para a liberdade de expressão"
"Este é um dia muito triste para a liberdade de expressão e de associação", disse Ana Monteiro, da Amnistia Internacional, reagindo às sentenças. "Não deveria ter existido sequer um julgamento. Estamos a falar de cidadãos angolanos que estavam reunidos a falar sobre liberdade e democracia". Zenaida Machado, investigadora da HRW, considerou a condenação ridícula.