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"Há um vácuo na gestão das receitas do gás em Moçambique"

Marcio Pessôa
11 de fevereiro de 2020

Analista sugere que Moçambique crie órgão despolitizado para evitar perdas de arrecadação e intermediar os interesses sobre a indústria. Alta Autoridade da Indústria Extrativa foi regulamentada, mas não saiu do papel.

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Perdas de receitas revelam falhas na gestão das obrigações estatais no setorFoto: ENI East

O Centro de Integridade Pública (CIP) alertou para os prejuízos que Moçambique pode ter tido por não fazer a certificação dos custos dos projetos da indústria do gás natural na Bacia do Rovuma, em Cabo Delgado, no norte do país. Estima-se que ao menos 7,1 mil milhões de dólares declarados pelas empresas envolvidas em projetos de extração de gás natural no país até 2015 não foram verificados, o que teria impacto direto na captação dos benefícios fiscais provenientes desses projetos. Ainda não foi calculado o valor dessas perdas aos cofres públicos. 

O alerta refere-se diretamente à reversão das receitas provenientes da exploração do gás para as necessidades da população. O diretor executivo da agência de avaliação de risco EXX Africa, Robert Besseling, diz que este fenómeno pode ser revertido noutros setores da indústria extrativa e tem motivos específicos para acontecer. O analista diz que os últimos anos de "isolamento” de Moçambique, especialmente devido ao escândalo das dívidas ocultas, podem ter gerado um vácuo administrativo e de capacitação que prejudica a gestão estatal dos projetos.

Besseling salienta que vários países têm criado um organismo específico de desenvolvimento - com a participação do Governo, das empresas e da sociedade civil - que teria a responsabilidade de uma gestão ampla da indústria extrativa. Seria uma estrutura sem influência política, responsável pela gestão de arrecadação de impostos e receitas do setor, com a função de agilizar a comunicação entre os interessados nos projetos e garantir que os investimentos gerem retorno às comunidades no que elas mais precisam.   

Extração de gás: Até 2015 não teria ocorrido certificação dos custos dos projetosFoto: ENI East

Moçambique regulamentou a chamada Alta Autoridade da Indústria Extrativa, que poderia ter esta função. No entanto, além de não ter saído do papel, o organismo é alvo de diversas críticas relacionadas a sua concepção. A principal causa desse ceticismo refere-se à prestação de contas do órgão, prevista para ser feita ao Conselho de Ministros em vez de ser direcionada à Assembleia da República e diferentes setores da sociedade.

Nesta entrevista à DW Africa, Robert Besseling fala sobre os desafios de Moçambique no âmbito da indústria extrativa após os últimos anos de crise e como esse organismo gestor deveria funcionar caso fosse implementado no país.

DW África: A EXX Africa lançou há poucas semanas um relatório otimista a respeito dos investimentos em Moçambique para 2020. No entanto, tendo em vista a crise económica do país nos últimos anos, há medidas a serem adotadas para que essa perspetiva de recuperação se confirme. Quais seriam elas?

Robert Besseling (RB) O relatório sobre as perspetivas económicas para 2020 em Moçambique foi excepcionalmente positivo devido a este fluxo gigantesco de investimento estrangeiro no país - começando com estes grandes investimentos da Exomobil, ENI, Total... Estamos a falar de dezenas de milhares de milhões de dólares que irão fluir direta ou indiretamente para o tesouro moçambicano. É uma perspetiva positiva para o país, que pode assim recuperar-se de dificuldades criadas pelo colapso da moeda, retirada do Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outras questões. A preocupação agora é sobre o quanto a estrutura do Governo moçambicano estaria preparada para receber esta quantidade gigantesca de dinheiro após quatro anos de colapso económico e instabilidade da moeda. Devemos olhar para o Ministério das Finanças, o Banco de Moçambique [Banco Central], o sistema judiciário, a Autoridade Tributária de Moçambique [agência coletora de impostos] e perguntar: o quão eficiente essas agências estarão a ser na gestão de recursos financeiros? Até que ponto elas têm a capacidade adequada em termos de recursos humanos, sistemas informáticos? Como estão a ser aplicadas as melhores práticas para lidar com tudo isso? O FMI e o Banco Mundial (BM) têm sido bem ativos nos últimos dois anos, lidando com algumas dessas questões, iniciando alguns programas. Mas depois de o FMI e o BM terem recuado, após 2016, depois do escândalo das dívidas ocultas, há naturalmente uma lacuna de meios – muitos desses projetos foram paralisados, muitos financiamentos de organizações multinacionais forma suspensos. A questão é que apenas agora, lentamente, isto está a voltar à cena. Alguns desses recursos voltaram em 2019. O FMI está lentamente a considerar o lançamento de um novo programa com o Ministério das Finanças.  Esta lacuna de meios vitais seria essencialmente um vácuo [nessa estrutura] e é uma preocupação para a gestão dessas receitas - uma vez que Moçambique começa a receber esses "royalties", os impostos sobre o lucro do capital, eventuais compartilhamentos de lucros, etc.

DW África: Esta carência de capacitação ou de meios pode ser vista em outros setores, além da extração do gás natural ou  noutras cadeias produtivas?

RB: Isto não está apenas associado ao gás [natural], mas também aos megaprojetos em geral. Moçambique não está a olhar só para a coleta de impostos no setor de gás. O país também está a olhar para os benefícios da participação direta em todos os serviços que devem ser vendidos [no âmbito] desses projetos. Isso inclui transporte, serviços legais e jurídicos, provisões diversas [catering], segurança... Todos esses tipos de serviços vão também gerar recursos que serão levados aos cofres moçambicanos direta ou indiretamente. A gestão de todos estes fluxos de receitas após quatro anos de virtual inatividade em Moçambique levanta um tipo de preocupação.

Robert Besseling é diretor da EXX AfricaFoto: APO Group London/G. Kruger

DW África: Como mudar este cenário?

RB: Eu acho que há duas questões que o Governo poderia implementar. É um Governo reeleito recentemente. Trata-se de um mandato forte, apesar das alegações de fraude nas eleições. Uma medida seria começar a olhar para o futuro, a outra refere-se a corrigir o passado. Corrigir o passado significa lidar com as pessoas que - previamente, quando Moçambique viveu o "boom” no setor das minas, já antecipando as receitas do gás - conseguiram desperdiçar centenas de milhares de dólares ou mais em dívidas ocultas. O número de indivíduos implicados nisso tornou-se bastante substancial. Autoridades britânicas, suíças, norte-americanas, sul-africanas estão empenhadas em investigações sobre isso. Moçambique por si só tem que provar que também tem vontade política e capacidade judiciária para levar à justiça as pessoas envolvidas nesse escândalo. Isso implicaria imediatamente indivíduos seniores do partido no poder e significaria lidar com o problema da extradição do antigo ministro das Finanças Manuel Chang, além de observar muito cuidadosamente o papel do ex-Presidente Armando Guebuza e dos seus mais fiéis colaboradores, que também podem ser implicados até certo ponto nas tomadas de decisões sobre aprovisionamentos de armas e dívidas ocultas descobertas em 2015. Nesta área, a FRELIMO e o Presidente Filipe Nyusi podem fazer algo significativo para tentar corrigir [erros] do passado. Isso enviaria um sinal positivo e também desencorajaria qualquer um no futuro a tentar desviar dinheiro do Governo. 

O segundo ponto seria olhar para o futuro. Não só para evitar desvios, mas também para criar capacidades. É absolutamente correto dizer que o FMI e o BM desempenham um papel-chave nisso, mas também há parceiros bilaterais – inclusive governos europeus como de Alemanha, França, Itália... Todos eles têm [companhias dos seus países] e bancos de desenvolvimento envolvidos no "boom” iminente do gás natural moçambicano. Há também outros governos. Os Estados Unidos, por exemplo, podem desempenhar um papel importante. Há outras agências multilaterais como Banco Africano de Desenvolvimento (BAD). O problema aqui é: se houver tantos parceiros com projetos que se sobrepõem ou duplicam, haverá confusão, problemas de comunicação. Por isso, é necessária uma organização central abrangente para lidar com todos estes projetos diferentes, com parceiros governamentais bilaterais e multilaterais, com as ONG, agências e bancos de desenvolvimento. Uma alternativa seria tentar criar uma agência de desenvolvimento abrangente para lidar com fundos soberanos, com arrecadação de impostos, com a disponibilização de verbas para projetos de desenvolvimentos, garantido que todos esses recursos que Moçambique recebe desse "boom” do gás natural realmente sejam revertidos ao que os cidadãos moçambicanos mais precisam. Pode parecer  complicado, mas a motivação dos parceiros envolvidos é otimista, e com certeza não há questão de carência de dinheiro para isso.

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DW África: Qual seria o perfil dessa agência de desenvolvimento?

RB: Teria de ser uma organização central, sem interferência política, que pudesse coordenar diferentes iniciativas. Se isso puder ser feito, certamente o BM e o BAD também seriam capazes de auxiliar na definição das estruturas [desse organismo]. Isso é o que se encontra em vários países que tentam investir a receita arrecadada com a indústria extrativa no desenvolvimento local. Tudo se resume em gerir as diversas iniciativas e a comunicação entre os parceiros, garantindo que a geração de capacidades seja supervisionada centralmente sem interferência política. Isso é um aspecto crucial para ser construído no futuro. Como isso deve ser feito, depende de cada país. Em Moçambique há potencial para ser feita uma espécie de comissão ou conselho com o envolvimento da sociedade civil e organizações que incentivam a transparência. Isso vai permitir que se crie essencialmente essa capacitação. Já é um pouco tarde. Isso deveria ter ocorrido há três ou quatro anos. Em Moçambique,teriam de fazer isso rapidamente.

DW África: Quais são as experiências em outros países quem podem ajudar a compreender a eficiência desse tipo de iniciativa?

RB: O Governo da Costa do Marfim criou este organismo. Eu sei que o novo Governo da Argélia está a tentar coletar a receita da extração de gás de forma mais eficiente, com a nova gestão da [estatal] Sonatrach. O rei do Marrocos recentemente, no final de 2019, criou uma nova comissão para o desenvolvimento do país. Essencialmente essa comissão quase que elimina a autoridade única do Governo. É claro que Costa do Marfim e Marrocos têm trabalhado relativamente bem com alguns dos seus recursos minerais. Marrocos lida com fosfatos na mineração, já a Costa do Marfim lida não apenas com a mineração, mas também com a extração de gás. Na Argélia ainda temos de ver por qual caminho estão a seguir, é um pouco cedo para comentar. Mas há inúmeras iniciativas que já são bem-sucedidas. O Senegal, por exemplo, criou uma comissão semelhante, que também procura desenvolver a exploração dos recursos naturais do país neste sentido. Alguns países, por outro lado, não têm feito a gestão de recursos minerais de forma bem-sucedida, vimos isso na África Central e na África Austral. São nesses países que sempre se observa um crescimento económico lento - apesar de os preços dos minérios terem estado mais altos - e problemas concretos de desenvolvimento socioeconómico. Se uma estrutura abrangente como estas for construída, pode facilitar o desenvolvimento socioeconómico do país.

Quanto maior investimento das empresa, menor é a contrapartida para o EstadoFoto: DW/Eleuterio Silvestre

DW África: Qual a diferença desta estrutura ampla de gestão dos fundos soberanos?

RB: Os fundos soberanos deveriam estar fora das políticas do Governo, porque não são responsáveis por coletar impostos ou receitas da exploração dos recursos. Esses fundos devem apenas receber os recursos do Governo e, sem interferência política, investi-los. Fundos soberanos mantêm uma reserva de operações cambiais, a qual o banco central e o Ministério das Finanças não podem simplesmente utilizar quando há uma questão cambial a resolver. Tais fundos também podem fazer investimentos locais e internacionais a favor da população. O problema em Angola, por exemplo, é que vimos questões relacionadas com a gestão dos fundos soberanos que, aos poucos, estão a ser desvendadas. Para Moçambique, há casos bons e maus que podem ser analisados em África, Europa e até Golfo Pérsico. Como os fundos soberanos devem ser estruturados, administrados, até que ponto devem ter intervenção política e como os fundos devem ser utilizados  – geralmente em investimentos de longo prazo em favor da população do país.

 

 

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