Herói de "Hotel Ruanda" diz que prisão foi um "inferno"
Lusa
1 de julho de 2023
Num vídeo publicado, este sábado, para assinalar o 61º aniversário da independência do Ruanda, Paul Rusesabagina agradeceu o apoio dos EUA para a sua libertação e voltou a criticar o Presidente Paul Kagamé.
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Paul Rusesabagina, um dos maiores críticos do Presidente do Ruanda, afirmou, este sábado (01.07), num vídeo publicado no YouTube, que os ruandeses são "prisioneiros no seu próprio país" e acusou o regime de Paul Kagamé de "autoritário".
Na primeira mensagem pública desde que foi libertado, a 25 de março, após mais de 900 dias numa prisão ruandesa, o herói do filme "Hotel Ruanda", conhecido internacionalmente por ter salvado centenas de pessoas durante o genocídio dos tutsis em 1994, agradeceu aos Estados Unidos por terem organizado a sua libertação surpresa do que descreveu como um "inferno".
Rusesabagina explicou que a mensagem no YouTube coincide com a proclamação da independência do Ruanda, em 01 de julho de 1962.
"Infelizmente, hoje, 61 anos depois, os ruandeses ainda não são livres. Os ruandeses são prisioneiros no seu próprio país", afirmou o opositor ruandês a partir da sua residência em San Antonio, Texas (Estados Unidos).
"[O Governo ruandês] é autoritário, não concede direitos aos seus cidadãos e não tolera a dissidência", acrescentou, acusando o regime de Kagamé de, desde o lançamento do filme em 2014, o ter tentado silenciar "através da política, da vigilância e da violência".
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"Tive a sorte de não ter sido morto"
"Eles raptam, prendem à força, torturam, matam e organizam julgamentos forjados para todos os que discordam deles. Tive a sorte de não ter sido morto como tantos outros. O meu julgamento fez manchetes em todo o mundo, mas não sou o único entre milhares de pessoas que passam por esta situação todos os anos", prosseguiu.
Rusesabagina, 69 anos, ficou conhecido pelo filme "Hotel Ruanda", que conta como este hutu moderado, que geria o Hotel das Mil Colinas, na capital do Ruanda, salvou cerca de 1.200 pessoas durante o genocídio dos tutsis em 1994.
Rusesabagina, de nacionalidade belga e residente permanente nos Estados Unidos, foi libertado em março, após 939 dias de detenção, depois de ter visto a sua pena de 25 anos de prisão por "terrorismo" comutada por decreto presidencial.
A condenação, em setembro de 2021, suscitou a condenação internacional. Os ativistas dos direitos humanos acusam o Ruanda -- governado com mão de ferro por Kagamé desde o fim do genocídio (morreram cerca de 800.000 pessoas) -- de reprimir a liberdade de expressão e a oposição.
Rusesabagina vivia exilado nos Estados Unidos e na Bélgica desde 1996, antes de ser detido em Kigali, em 2020, em circunstâncias obscuras, ao sair de um avião que julgava ter como destino o Burundi.
O opositor foi julgado entre fevereiro e julho de 2021, acusado de "terrorismo" por atentados perpetrados pela Frente de Libertação Nacional (FLN), uma organização classificada como terrorista por Kigali, que fizeram nove mortos em 2018 e 2019.
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.
Foto: Timothy Kisambira
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Os apoiantes do crítico de Kagamé consideram que o julgamento foi uma farsa marcada por irregularidades.
Rusesabagina admitiu ter participado na fundação, em 2017, do Movimento Ruandês para a Mudança Democrática (MRCD), do qual a FLN é considerada o "braço armado", mas sempre negou qualquer envolvimento nos ataques.