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"Hipocrisia da Europa custa caro aos africanos"

1 de agosto de 2022

Economista guineense Carlos Lopes diz que, em vez de tomarem partido, Estados africanos têm de defender os seus interesses na "guerra energética" que se avizinha.

Frankreich, Paris | Carlos Lopes (2016)
Foto: Eric Piermont/AFP/Getty Images

Na semana passada, o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chefe da diplomacia russa, Sergei Lavrov, fizeram um périplo por África quase em simultâneo. Na próxima semana, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, vai passar pela África do Sul, República Democrática do Congo e Ruanda.

Procuram um posicionamento dos países africanos face à nova conjuntura internacional, em que a Rússia reclama a criação de uma nova "Ordem Mundial" sem o protagonismo "unipolar" do Ocidente.

A guerra na Ucrânia fez com que o Ocidente implementasse sanções contra a Rússia, mas a Europa também tem sofrido consequências: Como noutros pontos do mundo, os preços dos combustíveis aumentaram e a inflação disparou. Além disso, os líderes dos 27 temem que a Rússia venha a cortar o abastecimento do gás à Europa já no próximo inverno. Por isso, abriram várias frentes em busca de alternativas energéticas, para manter as casas quentes e não desligarem as máquinas industriais.

Em entrevista à DW África, o economista guineense Carlos Lopes, Alto Representante de África junto da União Europeia, diz que alguns países africanos têm potencial suficiente para fornecer gás à Europa, mas o problema é como fazer chegar o produto ao "velho continente". Por outro lado, o também professor da Escola de Governação Pública Nelson Mandela, na Cidade do Cabo, critica a "hipocrisia" dos líderes europeus em relação a África.

DW África: Será que África pode ser uma alternativa viável no fornecimento de gás à Europa? Quais são os países que estão em condições de alimentar a indústria europeia?

Carlos Lopes (CL): Há gás em países atualmente produtores de petróleo, como a Argélia, Nigéria e outros como o Egito. Dentro em breve, o potencial do Senegal, Mauritânia, Moçambique e Tanzânia será posto em produção. O problema é como fazer chegar esse gás à Europa.

Fala-se muito da tensão entre Marrocos e a Argélia em relação ao fornecimento, pois são os únicos que dispõem de gasodutos ligados à Europa e têm ambições de desenvolver projetos colossais para ampliar essa capacidade. Ambos os projetos são significativos e não é por acaso que estavam em estágio avançado de conceção antes que a guerra na Ucrânia colocasse a questão do gás no centro da discussão europeia.

A Nigéria, onde começariam os dois gasodutos, tem um enorme potencial de exportação de gás, o que ficou comprovado inclusive com o escândalo das perdas por queima de gás. Mas no momento, a sua produção está toda comprometida. Para aumentá-la seria necessário ter um mercado que tivesse certas caraterísticas que Marrocos e Argélia logo identificaram. Esses países têm uma rivalidade bem conhecida. No caso de Marrocos, a sua própria dependência do gás teria solução com o gás de outros países da África Ocidental: Nigéria, Senegal e Mauritânia, por onde passaria um gasoduto ligando toda a zona costeira. Isso também permitiria aumentar a sua produção de fertilizantes, a quarta maior do mundo, e aliar-se comercialmente à da Nigéria, que aumentará significativamente. Para a Argélia, o gasoduto transariano da Nigéria via Níger consolida o seu peso nas relações com a Europa, como grande exportador de gás.

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Os dois gasodutos mostram uma nova tendência para ver o mercado intra-africano como um elemento importante para a viabilidade financeira de grandes projetos de investimento. Quanto aos demais produtores, eles teriam recurso ao gás natural liquefeito que se pode transportar em navios.

DW África: Quais são os grandes entraves que esses países teriam? E as consequências para esta nova parceira?

CL: É evidente que as guerras na zona do Saara e Sahel, bem como o novo conflito em Cabo Delgado, em Moçambique, têm muitas justificativas na condição de marginalização económica daquelas regiões, a começar pelo isolamento das populações pastoris que permanecem vulneráveis. Elas têm mais dificuldade em se adaptar à pressão populacional, crescente urbanização e modernização das transações comerciais. Rebelam-se e sentem-se abandonados pelos citadinos e Estados com uma administração muito ausente em regiões remotas. Mas também temos que aceitar que a crescente presença do jihadismo e outras formas de violência ou intervenção militar têm mãos de potências externas, tanto do Ocidente (como no caso da Líbia ou Mali) quanto de potências do Médio Oriente, Rússia e Turquia.

Essas presenças diversas, com grande proliferação de armas e também dinheiro sujo, não pode deixar de ter uma conexão com uma outra guerra de longo prazo, a guerra energética. É nesta parte do globo que temos grandes reservas de urânio, o maior potencial de hidrogénio verde, maior capacidade de instalação de energia solar e também de gás. É provável que, mesmo em geotermia, África tenha potencialidades colossais ainda desconhecidas. Uma coisa tem a ver com a outra.

Dito isto, apenas o gasoduto transariano e parte da operação terrestre de Cabo Delgado estaria exposta de imediato a violência significativa. Mas outras regiões do mundo com os mesmos níveis de violência também têm gasodutos e operações offshore e conseguem protegê-los. Parece-me assim que o principal obstáculo pode ser a canalização de investimento para ativos que podem ser ociosos.

Carlos Lopes, economista guineenseFoto: DW/B. Darame

DW África: Como é que os líderes africanos deveriam encarar o atual momento, no contexto desta nova parceria económica com a Europa?

CL: Os líderes africanos têm de primeiro detetar que as políticas europeias em matéria climática estão submetidas aos interesses da Europa e quando estes interesses variam, como foi o caso com o impacto energético da guerra da Ucrânia, eles mudam as políticas sem hesitação. Disseram ser contra o nuclear, em certos países, aboliram as centrais de carvão, fizeram uma política contra o gás e agora mudaram tudo.

Essa hipocrisia custa caro aos africanos de duas formas: os capitais necessários para investir nestes domínios encareceram e a avaliação de risco ficou desfavorável, pois os países europeus dizem que África tem de fazer o que eles mesmo não estão preparados para fazer. Ou seja, só é bom quando economicamente lhes interessa e, pior ainda, quando lhes parece o momento certo em cada geografia. Os países africanos devem resolver essa contradição não pensando nas soluções energéticas em termos de exportação de matérias-primas, mas em termos do que precisam para a sua transformação e particularmente para a sua industrialização.

DW África: Como analisa as visitas de Emmanuel Macron e Lavrov a África no contexto da guerra na Europa?

CL: África já passou da fase em que aceitava ser tratada como um campo de influência de uns ou de outros, ao sabor de interesses que não controlava. A maioria dos líderes africanos reconhece esse tipo de intenção por parte de certos protagonistas e se presta voluntariamente a jogos simbólicos de fingimento para extrair vantagens de curto prazo, quando isso parece possível. Se não consegue ganhos, pelo menos acede a pódios que servem para a vaidade desses mesmos líderes. Assim se comportam os que visitam e os que recebem.

DW África. A posição dos líderes africanos sobre a guerra foi clara e mais acertada?

CL: Por várias razões, África não tem nenhum interesse em entrar num concurso de beleza para ver quem é melhor. A prova foi já amplamente tirada durante a pandemia. A começar com as restrições introduzidas pelos EUA e países europeus para a exportação de medicamentos vitais, reagentes, equipamentos respiratórios ou de proteção individual que afetaram fortemente os países africanos. Foi um alerta para pensar sobre como o continente deve lidar com a regulamentação farmacêutica, compras relacionadas à saúde e fabricação de medicamentos e produtos em áreas críticas para o controlo de doenças e proteção do bem-estar. E a resposta da África foi clara e contundente. Insistiram que se deve acabar com as restrições de patentes, manufaturar no continente e fazer licitações de forma grupada.

Com esta guerra, as consequências vão fazer sentir-se ao nível dos alimentos e do impacto de medidas no campo financeiro, para além dos custos em termos de inflação e logística global. A resposta de África precisa de ser parecida, ou seja, defender os seus interesses. Não tem que escolher ser pró-russa nem pró-ocidental. Tem de defender os seus interesses e reconhecer que, em matéria de violações do direito internacional e provocações, há muito que se diga.

DW África:  Em poucas palavras, pode revelar-nos os tópicos do seu novo livro "Mudança Estrutural em África?

CL: O meu novo livro, escrito conjuntamente com o economista principal do BAD, George Kararach, zimbabueano, é uma súmula das perceções deturpadas que influenciam a leitura do que se passa na África e como as teorias do desenvolvimento precisam de ser postas em causa por não terem sido capazes de aniquilar a dependência das matérias-primas, fundamento maior da estrutura de exploração colonial.

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