História do exílio de uma "burguesa" moçambicana em Itália
Rafael Belincanta (Roma)
1 de novembro de 2018
Vivendo há mais de 30 anos na Itália, Mickey dos Santos Rebelo perdeu a cidadania moçambicana ao ser expulsa do país, após a independência. Ficou quase 20 anos sem voltar a Maputo e continua sem passaporte moçambicano.
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Mickey Rebelo dos Santos - sobrinha de dois fundadores da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), Marcelino dos Santos e Jorge Rebelo - foi expulsa do país após um periodo passado num campo de reeducação.
A jovem burguesa não jurou fidelidade à FRELIMO.
"Eu fui expulsa de Moçambique depois de ter estado no campo de Matutuíne, que era um campo de reeducação militarizado para jovens. Eu era a favor da FRELIMO, mas tinha 18 anos, usava jeans, era uma pessoa livre, burguesa, não tinha feito nada de mal, se não o fato de apresentar-me, não como uma comunista – neste momento lembramos que Moçambique chamava-se República Popular de Moçambique –, ou seja, eu com o Mao Tsé-Tung [líder comunista e revolucionário chinês] não tinha nada a ver," recorda.
"Eu não queria vestir chinês. Eu queria jeans, Beatles e Rolling Stones, eu era isso. Então, não foi justo. Mas eu percebo porque isso aconteceu," avalia.
Naquele período não havia perdão para quem contrariasse os ideais do novo Governo independente. Nem mesmo para uma sobrinha dos fundadores do partido no poder em Moçambique desde 1975.
"Não importa que tu és sobrinha de, neste caso, dois [políticos] muito importantes, que eram o Marcelino dos Santos e o Jorge Rebelo. Tu também vais para a reeducação," avalia.
"Apanhei um choque, porque vinha de uma classe burguesa. Não tenho vergonha de dizer," considera.
"Tinha uma boa cultura e a prova é que ainda estou aqui e nunca traí o meu país. Nunca fiz política contra Moçambique, continuava a amar o meu país como amo hoje," diz.
Duas décadas sem ir "a casa"
Sem passaporte, Mickey ficou quase 20 anos impossibilitada de regressar ao seu país.
"Eu perdi a nacionalidade. Eu tenho que readquirir a nacionalidade, que é um processo diferente de quem perdeu só porque foi embora. Eu fui expulsa e, naquele momento, perdi a cidadania," explica.
03.10.18 Perfil Mickey Rebelo dos Santos - MP3-Stereo
"Depois, soube que tinha sido a minha avó que tinha dado o ultimato ao Marcelino dos Santos e disse: 'Olha, tu encontras a minha neta ou eu vou te bater'. E o Marcelino, que amava profundamente a sua mãe, pôs-se à minha procura e conseguiu encontrar-me. Depois que eu estive com o Marcelino, ele disse-me: 'Podes entrar em Moçambique," recorda.
"Então eu fiz a minha primeira visita a Moçambique. Uma emoção enorme porque é a tua terra. Quando chegas, sentes o cheiro da terra, da chuva, as pessoas, o amor, a comida," diz.
Relação com a oposição e expectativas para o futuro
Mickey conserva uma estima pelo líder histórico da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), Afonso Dhlakama, e lamenta a morte do líder da oposição.
"Entre os meus planos havia esse de ir cumprimentá-lo e agradecer-lhe, porque de todas as maneiras não pode haver uma democracia sem uma oposição," revela.
"Acho que o Dhlakama fez muito por Moçambique e era importante a sua imagem," considera.
"Com a FRELIMO, fiquei bastante desiludida pelo o que aconteceu com o passado Governo. Há muitas coisas que não foram esclarecidas. Chissano, acho que fez um bom trabalho. Mas depois dele, acho que houve um desastre. Não foi bom. Moçambique foi-se muito abaixo," avalia.
Mickey espera poder entrar em seu país, não mais como uma estrangeira.
"O problema do passaporte é um problema de coração, não é um problema de necessidade de ter um passaporte. É triste que tenho que estar duas horas à espera porque sou estrangeira, não? Eu não sou estrangeira, eu sou moçambicana," conclui.
Tarrafal: O Campo da Morte Lenta
O Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do cabo-verdiano Pedro Martins, "um sítio planificado para fazer sofrer as pessoas". Os presos políticos que por aí passaram recordam-no como "Campo da Morte Lenta".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Bastião de tortura
Construído numa das regiões mais agrestes de Cabo Verde, o Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do então preso político cabo-verdiano Pedro Martins, “um sítio planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas”. Para os detidos que por aí passaram, o local ficará para sempre nas suas memórias como o “Campo da Morte Lenta" devido ao regime a que eram submetidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Colónia para desterrados
Situada no concelho do Tarrafal, na ilha cabo-verdiana de Santiago, começou por chamar-se Colónia Penal. Entre 1936 e 1954 recebeu presos políticos portugueses desterrados pelo Governo do Estado Novo. Reabriu em 1961 para aí serem internados militantes anti-regime das colónias portuguesas de Angola, Cabo Verde e Guiné.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Inspirado nos campos nazis
O modo de funcionamento do Tarrafal e a forma como eram tratados os presos eram semelhantes aos de outros campos de concentração existentes no mundo. Castigos, tortura, trabalhos forçados, má alimentação e falta de assistência médica faziam parte do dia-a-dia dos detidos. A maior parte das detenções era feita de forma arbitrária.
Foto: DW/Madalena Sampaio
“Não estou aqui para curar”
Doenças como o paludismo e a biliose ceifaram muitas vidas no Tarrafal. O pequeno posto de socorro aí existente, dividido em duas salas, também servia de casa mortuária. “Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”, afirmava Esmeraldo Pais Prata, o médico do campo que tinha a alcunha de “Tralheira”. Gostava de assistir aos espancamentos e a dor dos presos deixava-o indiferente.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Ala dos presos cabo-verdianos
Os primeiros presos políticos de Cabo Verde foram internados no Tarrafal em 1968. O espaço onde estavam detidos era de tal modo exíguo que se tinham de acomodar "como sardinhas enlatadas”, recorda Pedro Martins, que foi detido quando tinha apenas 19 anos. Ao fundo da sala ficava a casa-de-banho, onde através de um transístor clandestino escutavam várias emissoras. Era a famosa "rádio retrete".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Sobreviver à alimentação
Era nesta cozinha que eram preparadas as refeições dos presos. Segundo os detidos, a alimentação era “péssima” e muito pouco diversificada. “Cachupa com uns vestígios de atum era-nos servida diariamente”, descreve Pedro Martins no livro “Testemunho de um Combatente”. Quando se recusavam a comer peixe estragado, “que nem os cães seriam capazes de comer”, o diretor mandava cortar-lhes as refeições.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Quotidiano duro
Nos dias de faxina, os detidos eram obrigados a carregar água em latas suspensas por um fio de arame. E também tinham de carregar a água para lavar as suas roupas para as tinas de betão armado. “Às vezes escasseava a água e tínhamos que a racionar”, lê-se no livro “Testemunho de um Combatente”. Nos meses mais quentes, a temperatura nas celas facilmente ultrapassava os 40 graus.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Testemunhos de sobreviventes
Na antiga cela dos presos políticos angolanos, uma exposição dá a conhecer os rostos de quem sobreviveu ao “Campo da Morte Lenta”. E testemunhos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. “A ideia principal era: vim para aqui e não sei se sairei daqui”, lê-se no poster do angolano Vicente Pinto de Andrade, que esteve aqui encarcerado entre 1970 e 1974, juntamente com o seu irmão Justino Pinto de Andrade.
Foto: DW/Madalena Sampaio
A temida "Frigideira"
Também conhecida como “câmara de torturas”, a “Frigideira” era uma caixa rectangular em cimento armado, dividida ao meio, com proporções para conter dois homens. Tinha uma porta em chapa de ferro com cinco pequenos furos na base, em cada divisória, e uma pequena grade de ferro no topo esquerdo. A temperatura aqui podia chegar aos 60 graus, segundo os detidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Tortura na “Holandinha”
No lugar da “Frigideira” foi construída outra cela disciplinar, "pouco mais alta que um homem em pé", com uma pequena janela de grades. Segundo os presos, era um “autêntico forno” onde não tinham capacidade de movimentos. A este cubículo de cimento, que ficava dentro de um espaço anexo à cozinha, deu-se o nome de “Holandinha”, numa referência ao país para onde partiam muitos cabo-verdianos.
Foto: DW/M. Sampaio
Comunicação entre presos
A muito custo, os nacionalistas africanos das colónias conseguiam, por vezes, comunicar entre si. Com a ajuda de alguns guardas “infiltrados”, os presos cabo-verdianos enviavam bilhetes aos angolanos que estavam do outro lado do campo, a quem também procuravam aliviar o sofrimento quando estes eram enviados para a “Holandinha”. Tudo feito sob uma “pressão enorme”, recordam hoje os presos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Estudar atrás das grades
No recinto existia também esta biblioteca, cuja instalação foi autorizada ainda na década de 40. Muitos camponeses aprenderam a ler e a escrever no Tarrafal. Segundo o cabo-verdiano Pedro Martins, quase todos os detidos na sua ala passaram a estudar e organizavam-se até horários de estudo. Os presos com mais instrução chegaram a dar formação política aos restantes companheiros.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Vítimas mortais
A detenção no Tarrafal custou a vida a 36 presos políticos: 32 portugueses, dois angolanos e dois guineenses. Entre as vítimas mortais de origem lusa inclui-se Bento Gonçalves, então secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP). Entretanto, vários outros morreram já depois da sua libertação, em consequência dos maus tratos e das condições de vida no campo de concentração.
Foto: DW/Madalena Sampaio
O dia da libertação
Foi por aqui que saíram os últimos presos do Tarrafal, no dia 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal. “O Tarrafal era uma prisão para o resto da vida. Se não fosse o 25 de Abril iríamos morrer todos lá”, afirmou o angolano Joel Pessoa. Nessa altura, a libertação dos presos políticos era uma das principais exigências da população.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Espaço meio abandonado
O campo do Tarrafal só foi definitivamente extinto em 1975. Acabaria por ser transformado em Museu da Resistência, em 2009. Atualmente, o espaço-símbolo da resistência anticolonialista encontra-se em estado de semi-abandono e sem grandes cuidados. Entretanto, o Governo cabo-verdiano constituiu uma comissão para preparar a candidatura do campo a Património Mundial da UNESCO.