Moçambique: HRW publica relatório "O Próximo a Morrer"
Ernesto Saúl (Maputo)
12 de janeiro de 2018
Dezenas de violações aos direitos humanos em Moçambique ainda estão por investigar, denuncia HRW. A ONG pede a punição exemplar dos autores das atrocidades militares registadas durante o conflito armado de 2015 e 2016.
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A Human Rights Watch (HRW) aponta num relatório, apresentado esta sexta-feira (12.01) em Maputo, que as forças governamentais e o braço armado do maior partido da oposição, a RENAMO, cometeram várias atrocidades na região centro de Moçambique durante as hostilidades militares de 2015 e 2016.
No relatório, intitulado "O Próximo a Morrer", a organização de defesa os direitos humanos denuncia raptos, assassinatos e detenções arbitrárias. A investigação baseia-se em mais de 70 entrevistas.
"Um régulo contou-nos a história de um colega seu (também régulo) assassinado pelas forças da RENAMO, por ser considerado um simpatizante do Governo. Ao apresentar a história do amigo assassinado, o régulo disse "eu sou o próximo a morrer", explicando o medo que ele vivia.Iain Levine, diretor de Programas da Human Rights Watch, refere que a prática destes abusos viola acordos internacionais assinados por Moçambique e lamenta a ausência de um debate sério sobre este assunto no país."Para nós é um sintoma dos problemas. Não há informação e debate público sobre as violações e nem a responsabilização dos autores destes crimes", diz Levine.
À Human Rights Watch, o Governo negou que as forças de segurança tenham estado envolvidas em desaparecimentos ou detenções arbitrárias. A RENAMO classificou as alegações de assassinatos políticos como "propaganda do regime".
Responsabilização criminal dos autoresAinda assim, o académico Silvério Ronguane destaca que é preciso responsabilizar criminalmente os autores dos abusos registados nas províncias de Manica e Sofala.
HRW lamenta impunidade e ausência de justiça em Moçambique
"De facto houve muitos abusos e há necessidade de dirimir conflitos e até prevenir a sua ocorrência. Aqueles que cometem excessos e abusos têm de ser levados a justiça. Penso que isso é fundamental. Mas também o relatório faz-nos pensar nas vítimas, não apenas na vertente indemnização mas na sua inserção social."
O ativista dos Direitos Humanos, Simão Tila, afirma que os dados apresentados no relatório são a prova de que são os cidadãos que sofrem com os conflitos armados em África e particularmente em Moçambique.
"E estes custos nós não conseguimos avaliar. A partir do momento em que começamos a ter este tipo de relatórios é que passamos a despertar sobre o que é que isto representa. Temos famílias que perderam os seus ente-queridos sem nenhuma explicação."
Entre as várias recomendações, o relatório sugere que o Governo e a RENAMO identifiquem e ordenem a punição exemplar dos agentes envolvidos nas atrocidades ocorridas durante a tensão político-militar em Moçambique.
Segundo Iain Levine, da Human Rights Watch: "A nossa esperança é que possamos contribuir para que haja justiça."
Moçambique: Guerra civil com pausas de paz
A paz nunca foi uma certeza em Moçambique. Ela apenas tem intercalado confrontos militares desde a independência. Acordos de paz mal concebidos parecem estar na origem dos conflitos. Mas há novos bons sinais à vista.
Foto: Presidencia da Republica de Mocambique
O começo da guerra civil
A guerra entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO começou em 1977, isso cerca de dois anos após a proclamação da independência do país. A RENAMO contestava a governação da FRELIMo e queria democracia. Este movimento tinha o apoio da ex-Rodésia e da África do Sul, dois vizinhos de Moçambique. A guerra matou milhões de moçambicanos e quase paralisou a economia do país.
Acabar com a guerra era o obetivo deste acordo, alcançado em 1984. Foi assinado entre os antigos Presidentes de Moçambique e da África do Sul, Samora Machel e Peter Botha, respetivamente. Ficou acordado que Pretória deixava de apoiar a RENAMO e Maputo parava o apoio ao ANC. Este último que lutava contra o Apartheid. Mas ninguém respeitou o acordo.
Foto: Avant Verlag/Birgit Weyhe
Acordo Geral de Paz de Roma
Colocou finalmente fim a guerra em 1992. Foi patrocinado pela Comunidade Santo Egídio, instituição católica italiana. Nessa altura o país já estava devastado e tinha transitado do sistema socialista para o da economia de mercado. Afosno Dhlakama, líder da RENAMO, e Joaquim Chissano, ex-Presidene de Moçambique, assinaram um acordo que pôs fim a uma guerra de 16 anos.
Eleições: nova era de desentendimentos
Em 1994 o país dava os seus primeiros passos rumo a democracia: início do multipartidarismo e realização das primeiras eleições, patrocinadas pela ONU. O primeiro Presidente eleito do país foi Joaquim Chissano. A RENAMO contestou, mas acabou por aceitar os resultados eleitorais.
Foto: Getty Images/AFP/Gianluigi Guercia
Eleições 1999: RENAMO revolta-se
Nas segundas eleições, em 1999, Joaquim Chissano e a FRELIMO voltaram a ganhar. Mas o processo foi novamente marcado por graves irregularidades, a RENAMO diz que houve fraude e contestou com mais veemência. E no ano 2000 apoiantes da RENAMO manifestaram-se em Montepuez província de Cabo Delgado, contra os resultados. Cerca de 700 manifestantes terão sido detidos e mortos por asfixia nas celas.
Foto: Marc Dietrich-Fotolia.com
Rastilho para o barril de pólvora já arde
As sucessivas irregularidades nas eleições, a lei eleitoral desajustada e difícil integração dos ex-guerrilheiros da RENAMO no exército nacional foram os principais pontos que aumentaram a tensão com o Governo. A falta de confiança que caracteriza a relação entre as partes aumentou.
Foto: Gerald Henzinger
As armas falam novamente
Em 2013 a polícia e homens da RENAMO confrontaram-se. Era o início dos conflitos armados. Nesse ano a RENAMO recusa a aprovação da Lei Eleitoral e não participa nas autárquicas. Há um interregno no conflito para a realização de eleições gerais em 2014. A RENAMO perde e acusa a FRELIMO de fraude. O país volta a ser palco de guerra. RENAMO exige governar as seis províncias onde diz ter ganho.
Foto: Fernando Veloso
Guebuza e Dhlakama: o braço de ferro até ao fim
Em setembro de 2014 o Presidente Armando Guebuza e o líder da RENAMO chegam a acordo para por fim ao conflito armado. Abriu-se assim caminho para as eleições gerais, onde a RENAMO participou. Mas as negociações entre os dois homens nunca foram fáceis. Para começar os encontros foram poucos.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Na guerra vale tudo
Em Setembro de 2015 Dhlakama sofreu dois atentados. Um deles contra a coluna em que viajava, de Manica a Nampula. Afonso Dhlakama saiu ileso, mas segundo relatos morreram várias pessoas. Mais tarde várias viaturas da comitiva do líder da RENAMO foram queimadas. Dhlakama acusou a FRELIMO pelos atentados.
Foto: DW/A. Sebastião
Cerco a casa de Afonso Dhlakama
Em outubro de 2015 a guarda pessoal do líder da RENAMO foi desarmada pelas forças governamentais durante um cerco à sua residência na cidade da Beira. O Governo pretendia um desarmamento forçado dos homens da RENAMO. O desarmamento da maior força da oposição é um dos pontos controversos nas negociações de paz.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Catueira
Diálogo de paz pouco frutífero
Infindáveis rondas marcaram as negociações de paz. E em paralelo as armas falavam nas matas, membros da RENAMO eram assassinados a média de um por mês em 2016. Observadores e mediadores, nacionais e internacionais, entraram e saíram do barulho sem conseguir muito. Houve também adiamentos de rondas e algumas pausas no processo.
Foto: Leonel Matias
Dhlakama e Nyusi: maior proximidade, bons sinais
Em agosto de 2017 o Presidente Nyusi deslocou-se à Gorongosa, bastião da RENAMO, para se encontrar com Dhlakama. Os dois líderes acordaram sobre os próximos passos no processo de paz. Esperavam um acordo de paz até ao final de 2017, mas tal não deverá acontecer. Entretanto, Dhlakama está satisfeito com o andamento das negociações. O sigilo entre os dois parece ser o segredo de um bom entendimento.