Existem paralelismos entre os dois casos e preendem-se com a origem da insurgência, diz Alex Vines. Mas o investigador britânico acredita que a crise ainda pode ser contida e que Maputo pode aprender dos erros de Abuja.
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As ações dos insurgentes na província nortenha de Cabo Delgado entraram agora numa nova fase. Aumentou a violência e a frequência dos ataques e as suas investidas passaram a atingir de forma humilhante os símbolos do Estado e religiosos, e sugerem a "tomada" de certas zonas.
Mas a resposta das autoridades moçambicanas também já começa a ser ajustada às incursões dos insurgentes. E com isso entram novos atores no palco dos confrontos. É sobre esta nova fase em Cabo Delgado que entrevistámos Alex Vines, investigador do Programa para África no instituto britânico de pesquisa Chatham House:
DW África: Pela primeira vez, o Governo reagiu a altura das investidas dos insurgentes, aparentemente com resultados satisfatórios. Se isso acontecer com regularidade, acredita que a insurgência tem os dias contados em Cabo Delgado?
Alex Vines (AV): As Forças de Defesa e Segurança (FDS) de Moçambique, durante o último mês, estiveram concentradas numa contra-ofensiva que foi possivelmente bem sucedida. E como todas as operações de contra-insurgência, esse desafio é de longo prazo, conquistando corações e mentes da população local, fornecendo desenvolvimento e segurança.
DW África: Há relatos sobre a presença de mercenários sul-africanos, zimbabueanos e até de tropas angolanas a apoiar o Governo moçambicano. Também já se fala na possibilidade de uma tropa da SADC para apoiar o país. Como vê a cooperação regional, se considerarmos que os insurgentes podem ter intenções expansionistas na região austral de África?
AV: É verdade que o Governo de Moçambique contratou grupo AJA para fornecer aconselhamento e apoio aéreo. Esta dupla presença na experiência de contra-insurgência de Angola, Serra Leoa, Nigéria e de outros países me parece ter revertido os ganhos da insurgência a curto prazo. Igualmente, importante é o recente anúncio de que a Tanzânia enviou tropas adicionais para a fronteira [com Moçambique] do rio Rovuma. Não acredito que Angola tenha enviado tropas, mas ofereceu conselhos como o Zimbabué. A crise em Cabo Delgado é um assunto regional e a SADC desempenha um papel nesse sentido.
Bispo de Pemba #explica situação humanitária em Cabo Delgado
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DW África: Já se fala em insurgentes infiltrados nas aldeias que estarão a usar a população como escudo. Também se advinha que deverão sequestrar ou atacar proeminentes líderes religiosos e altos governantes. Como interpreta essa nova abordagem dos insurgentes?
Alex Vines (AV): A insurgência entrou numa nova fase. Ataques como o de Mocímboa da Praia evitaram muitas baixas civis e elementos como combustíveis e dinheiro foram restituídos durante a ocupação. Claramente os insurgentes estão a tentar construir uma base social e estão a revesar os símbolos do Estado e dos colaboradores. É por isso que o Governo precisará melhorar muito as suas próprias estratégias de corações e mentes.
DW África: Já se pode dizer que Cabo Delgado é palco de uma guerra civil?
AV: É uma insurgência em Cabo Delgado e as causas principais são locais e regionais. Eu não diria que isso é como a guerra civil, como começou com a RENAMO em 1977 e que terminou em 1992, é diferente. Mas as maiorias das causas e soluções são moçambicanas.
DW África: Também se acredita que as desigualdades sociais estejam na ordem da insurgência. Como acha que as autoridades deviam resolver isso?
AV: Pobreza, desigualdade e a governação são os principais impulsionadores deste conflito. A nomeação de Armando Panguene em março deste ano como presidente da Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte de Mocambique é um desenvolvimento importante. Não existe uma solução militar para essa insurgência.
DW África: Acha que os interesses dos gás em Cabo Delgado são o objetivo final dos insurgentes?
AV: Pesquisas mostram que nos primeiros anos da década anterior a raiz do descontentamento islâmico já estava lá presente. Os desenvolvimentos do gás não são a causa ou raiz da insurgência, mas podem esperá-lo provocando o sentimento de inquisição.
DW África: Há perigo de um conflito inter-religioso?
AV: O islão mais puro é uma das razões para apoiar a insurgência. Isso certamente recorre à mediação por meio das mesquitas, ONG islâmicas e da comunidade muçulmana em Moçambique para buscar soluções. Não será resolvido através da violência
DW África: Há o risco de Moçambique se transformar numa pequena Nigéria?
AV: A insurgência em Cabo Delgado me lembra o crescimento inicial do Boko Haram no nordeste da Nigéria. As causas principais são semelhantes, assim como o local que faz fronteira, como uma fronteira internacional porosa. Espero que o Governo moçambicano aprenda com os erros dos nigerianos e evite que as crises piorem. A crise em Cabo Delgado ainda pode ser contida e [a situação] gradualmente melhorada.
Quais as motivações dos ataques armados em Cabo Delgado?
Há mais de nove meses que o norte de Moçambique tem sido palco de violentos ataques armados. Suspeitas há muitas e até já há um estudo, mas até hoje não está claro quem são os atacantes e nem o que os move.
Foto: Privat
Mocímboa da Praia: Era uma vez um lugar pacato...
Até 5 de outubro de 2017 a província de Cabo Delgado vivia na tranquilidade, pelo menos aparentemente. Mas desde essa data tudo mudou quando cerca de 30 homens armados desconhecidos atacaram três postos da polícia do distrito de Mocímboa da Praia, matando cinco pessoas, entre elas polícias, e ferindo mais de dez. Na altura a Polícia disse que estava a investigar o caso.
Foto: DW/G. Sousa
O alastramento dos ataques
Dois meses depois Mocímboa viveu novos ataques e desde essa altura os ataques armados têm vindo a alastrarar-se muito rapidamente para outros distritos. Palma começou a ser alvo a partir de janeiro de 2018.
Foto: DW/Estácio Valoi
Marcha contra um "Islão que não existe"
Uma semana depois do primeiro ataque Mocímboa da Praia marchou pela paz. A iniciativa juntou líderes de diferentes religiões, cristã e muçulmana, estes últimos a maioria na região. Os atacantes, que se dizem muçulmanos, defendem uma visão radical do Islão. As autoridades do distrito consideram que esse é um "Islão "que não existe", e acusam "os bandidos" de usaram a religião como "capa".
Foto: Estácio Valoi
Os indícios que não terão sido tomados a sério
Já em 2016 supostos pregadores do Islão foram expulsos do país por estarem ilegais no país. Também já foi intercetado um angariador de crianças a cujos pais era prometida educação e bons tratos. Mas o destino, passando por Nampula, eram escolas corânicas com o fim de radicalização. Há também detenções de pessoas que propagam a insurgência contra as instituições do Estado.
Foto: Colourbox/krbfss
Detenções e excesso de zelo
Cinco dias após o início dos ataques, a Polícia já tinha detido 52 pessoas, o que assustou alguns líderes religiosos. Mas havia outros líderes que eram a favor, justificando a necessidade de denunciar malfeitores para "purificar fileiras", mesmo que isso leve a excesso de zelo. Mas a Polícia ainda não sabe dizer quem são os atacantes, justificando sempre que está a trabalhar no assunto.
Uma das maiores reservas de gás de mundo está em Cabo Delgado. Em Palma as multinacionais operam no setor. Em Mocímboa da Praia há minas de rubis que são bem cotados nos mercados internacionais. O IESE, MASC e um líder muçulmano realizaram um estudo na sequência dos ataques e concluiram preliminarmente que o objetivo dos atacantes é garantir o tráfico dos inúmeros recursos da região.
Foto: ENI East
Erik Prince, o salvador da pátria?
Empresário norte-americano na área de segurança tem interesses nas empresas envolvidas nas dívidas ocultas. Uma delas a Proindicus, criada para garantir a segurança nas águas moçambicanas. Por outro lado acredita-se que tenha criado uma empresa de segurança e estaria a contar como pagamento pelos serviços os dividendos do gás. Eric Prince já prestou serviços para o Governo dos EUA no Iraque.
Foto: Imago/UPI Photo
Deslocados internos: Existem ou não?
O medo dos violentos ataques fez com que a população fugisse. Mas as autoridades locais garantem que ela regressa às suas comunidades graças à patrulha feita pelo exército e afirmam que são poucas as deslocações. Entretanto, não há números exatos. Quem está a lidar com esses deslocados são as autoridades locais. Até ao momento nenhuma agência da ONU ou ONG humanitária foram chamados a intervir.
Foto: Privat
Participação das FDS na reconstrução
Embora as FDS, Forças de Defesa e Segurança, não consigam impedir as ações dos atacantes elas garantem o patrulhamento depois dos ataques. Também auxiliam diretamente na reconstrução das casas incendiadas pelos atacantes. Isso, segundo as autoridades, permite o retorno da população às suas aldeias.
Foto: Borges Nhamire
Participação das comunidades
Supõe-se que os jovens que integram os grupos armados sejam recrutados nas comunidades. As autoridades pedem, por isso, que as populações se mantenham vigilantes e denunciem qualquer ilícito ou movimentação suspeita.
Foto: Privat
Governador visita comunidades
Os assassinatos tornam-se cada vez mais bárbaros. Há decapitações com recurso à catanas e nem as crianças escapam. Na sequência do recrudescimento dos ataques e do nível de violência o governador da província de Cabo Delgado, Júlio Parruque, visitou familiares das vítimas.
Foto: Privat
Presidente de Moçambique em Cabo Delgado
A 29 de junho de 2018 o Presidente Filipe Nyusi esteve nos distritos alvo dos ataques. Pouco antes disso o estadista tinha sido criticado por alguns setores por nunca se ter pronunciado publicamente sobre os ações violentas. Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção contra ataques e mostrou abertura, convidando os atacantes para dialogar.
Foto: privat
Um mar de gente para ouvir Nyusi
Em Cabo Delgado, Filipe Nyusi foi ouvido por milhares de pessoas a quem exortou para que se distanciem de crenças religiosas que estariam na origem da instabilidade: "Estão a recrutar pessoas nos distritos costeiros. Estão a ir também a Nampula recrutar pessoas para vir morrer aqui. Não deixem que isso aconteça. Estão a semear luto nas vossas famílias. E são jovens que vocês conhecem, denunciem".