ONU acusa o Governo do Burundi de crimes contra a humanidade
Martina Schwikowski
6 de setembro de 2017
Comissão de Inquérito relata violações, execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e atos de tortura. Uma das vítimas falou com a DW África.
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Vítima de violação, a jovem que falou à DW África fugiu do Burundi. "Empurraram-me contra a parede. Um pegou numa faca, cortou as minhas calças e violou-me, o segundo também", diz a jovem que, logo depois, perdeu a consciência.
Ao relembrar os momentos de terror que antecederam a violação, ela alega que os intrusos disseram que iam derrubar a porta. "Tive medo e disse à minha filha e às minhas sobrinhas para se esconderem debaixo da cama", completa a vítima, torturada após os intrusos terem investigado o telemóvel da jovem, onde encontraram sites de rádios críticas ao Governo.
Ela é uma dos mais de 500 refugiados que conversaram com a Comissão de Inquérito da ONU, criada pelo Conselho dos Direitos Humanos da organização. Os investigadores, que ouviram os relatos de terror oriundos do Burundi, não puderam trabalhar no país, porque o Governo lhes negou entrada. Coletaram as informações nos países vizinhos, onde contactaram com os refugiados.
O presidente da comissão, Fatsah Ouguergouz, culpa o Governo pela violência. "Os atos que violam o direito internacional são realizados pelos serviços secretos, agentes da polícia nacional e pelas forças burundesas, o exército. Mas também os Imbonerakures, a jovem milícia do partido no poder, CNDD-FDD, tiveram uma participação direta ou indireta nos crimes", comenta Ouguergouz.
ONU acusa o Governo do Burundi de crimes contra a humanidade
Violência e refugiados
Desde o início da crise no Burundi há dois anos, quase 400 mil pessoas fugiram. É um número que deve chegar ao meio milhão até o final do ano, segundo estimativas das Nações Unidas.
A crise começou quando o Presidente Pierre Nkurunziza decidiu candidatar-se a um terceiro mandato, violando a Constituição, tendo vencido uma eleição controversa. A violenta repressão de manifestações e um golpe de Estado falhado, em maio de 2015, conduziram o poder a uma repressão sistemática — que resultou entre 500 a dois mil mortos. Envolvidos na violência também estariam alguns grupos armados da oposição.
ONU cria comissão de inquérito
O Conselho dos Direitos Humanos da ONU criou a Comissão de Inquérito para investigar os abusos no Burundi em setembro de 2016, um ano depois de estalar a crise no país. Os peritos apelam, por isso, ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que investigue com urgência os crimes contra a humanidade e outras atrocidades cometidas.
Mas o TPI tem pouco tempo já que o Burundi decidiu retirar-se do Tribunal em outubro de 2016 — decisão que será consumada em outubro deste ano. Se, até lá, o TPI não iniciar um inquérito, apenas o Conselho de Segurança da ONU poderá fazer o pedido à instituição internacional.
Governo se defende
Em defesa, o Governo do Burundi rejeita as acusações. O ministro para os Direitos Humanos Martin Nivyabandi afirma que "estamos agora a preparar um contra-relatório e veremos como o Governo fez muitos esforços para combater a impunidade. E aqueles que forem culpados dos crimes devem ser punidos de acordo com as leis", diz.
Nivyabandi vai além e condena o trabalho do Tribunal Penal Internacional. "Não é tarefa do TPI investigar no Burundi. A solução é ajudar a justiça do país", sustenta. Em uma rede social, o embaixador do país às Nações Unidas, Albert Shingiro, escreveu que a Comissão de Inquérito foi tendenciosa. Ainda disse que o relatório foi politicamente motivado.
Burundi: uma cronologia da crise
Em julho de 2015, o Presidente Pierre Nkurunziza candidatou-se a um terceiro mandato, dando espaço a uma profunda instabilidade no país. Possível solução da crise, que já deixou milhares de mortos, não está à vista.
Foto: Getty Images/AFP/C. Ndegeya
Julho de 2015: eleições tensas
O anúncio em abril de que o Presidente do Burundi, Pierre Nkurunziza, concorreria a um terceiro mandato à revelia da Constituição, gerou um confronto amargo entre apoiantes e opositores do governo. Em três meses, mais de 80 pessoas foram mortas. Muitos dissidentes e jornalistas deixaram o país. As eleições em 21 de julho de 2015 foram boicotadas pela oposição.
Foto: Reuters/E. Benjamin
Julho de 2015: Agathon Rwasa – um perdedor?
Em 24 de julho, foi anunciado que o líder da oposição, Agathon Rwasa, perdera as eleições. Nkurunziza foi escolhido como novo Presidente com 69% dos votos. Dias depois, Rwasa foi nomeado vice-presidente da Assembleia Nacional. Antigos aliados apelidaram-no de "traidor".
Foto: Reuters/M. Hutchings
Agosto de 2015: general é morto
Em 1 de agosto, o general Adolphe Nshimirimana, responsável pela segurança pessoal do Presidente, foi morto num atentado na capital Bujumbura. A União Europeia demonstra preocupação com a "perigosa escalada de violência" e pede "contenção" e retomada do diálogo. Em provável retaliação à morte do general, o ativista Pierre-Claver Mbonimpa foi alvo de uma tentativa de assassinato em 3 de agosto.
Novembro de 2015: tensões entre Burundi e o Ruanda
Desde o início da crise, milhares de cidadãos do Burundi refugiaram-se no Ruanda. Em 6 de novembro, o Presidente do Ruanda, Paul Kagame, criticou a situação de violência e instabilidade no país vizinho. "Vocês devem tirar lições do que aconteceu no Ruanda", declarou em referência ao genocídio de 1994. Nkurunziza acusa o governo ruandês de recrutar burundeses para causar mais problemas.
Foto: picture-alliance/AP Photo/E. Kagire
Dezembro de 2015: escalada da violência
Em 12 de dezembro, mais de 100 pessoas foram mortas em confrontos. Os assassinatos de autoria desconhecida seriam uma resposta aos ataques coordenados contra três bases militares no dia anterior. "Quando um conflito irrompe em grande escala, não podemos fingir que nada aconteceu", afirmou Adama Dieng, relator especial das Nações Unidas sobre prevenção do genocídio.
Foto: Reuters/J.P. Aime Harerimana
Dezembro de 2015: novo movimento rebelde
Um dia antes do Natal, o ex-oficial do exército Edouard Nshimirimana proclamou a formação de um novo grupo rebelde. As "Forças Republicanas do Burundi" têm o objetivo de derrubar Nkurunziza. O militar acusou o Presidente de utilizar a força e de colocar a polícia e o exército um contra o outro.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Pfister
Dezembro de 2015: tentativas de mediação
O Presidente do Uganda, Yoweri Museveni, inaugurou em 28 de dezembro negociações de paz entre a oposição e o governo do Burundi. A União Africana decidiu enviar oito mil soldados ao país. Nkurunziza recusa-se a dialogar com a CNARED, a coligação da oposição. A ONU anunciou a abertura de investigações para apurar alegadas violações de direitos humanos.
Foto: picture-alliance/AP Photo/S. Wandera
Abril de 2016: ONU denuncia tortura
O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad Al Hussein, denunciou a prática de tortura rotineira nas prisões do Burundi. Desde o início do ano, foram 354 casos. O Governo do Burundi deve "acabar com as práticas inaceitáveis e ilegais imediatamente", afirmou Al Hussein.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Campardo
Maio de 2016: CNARED de fora
Em 21 de maio, começam as negociações de paz em Arusha, na Tanzânia. O ex-presidente tanzaniano, Benjamin Mkapa, atua como mediador. A coligação de grupos da oposição CNARED não é convidada, sob pena de o Governo do Burundi deixar as conversações.
Foto: Getty Images/AFP/T. Karumba
Junho de 2016: críticos pagam preço elevado
Em 3 de junho, onze estudantes da cidade de Muramvya foram presos por rabiscar uma foto de Nkurunziza num livro escolar. O caso gerou revolta entre ativistas de direitos humanos. Anteriormente, 300 alunos já tinham sido expulsos das aulas em Ruziba pelo mesmo motivo.
Foto: DW
Julho de 2016: ex-ministra é morta
A morte de Hafsa Mossi, ex-ministra e confidente do presidente Nkurunziza, em 13 de julho, cria ainda mais tensão no Burundi. A ex-jornalista era membro do partido no poder, CNDD-FDD, e trabalhou como assessora de comunicação para o chefe de Estado. Pela primeira vez, um político do alto escalão do governo é assassinado em Bujumbura.
Foto: Reuters/E. Ngendakumana
Julho de 2016: um assento vazio em Kigali
A crise no Burundi foi um dos temas de discussão da 27ª Cimeira da União Africana, realizada em Kigali, no Ruanda. A delegação do Burundi não participou nas discussões, porque pediu licença pouco antes da reunião. Os chefes de governo e de Estado da União Africana não chegaram a um acordo sobre a imposição de sanções. Falta vontade de Nkurunziza para negociar a saída do impasse.