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Jeremias Naiene: Um médico moçambicano no Iémen

Maria João Pinto
20 de agosto de 2019

Passou quatro anos na Libéria, ao serviço da OMS, no combate à pior epidemia de ébola de que há memória. Agora, está a prestar apoio aos profissionais de saúde no Iémen, na mais grave crise humanitária do mundo.

Mosambik - Arzt Jeremias Naiene
Foto: privat

As Nações Unidas chamam-lhe a pior crise humanitária do mundo: o Iémen. E os números são chocantes: quase cem mil pessoas morreram desde o início do conflito, em 2015, uma luta pelo controlo do país entre os rebeldes Huthis, apoiados pelo Irão, e as forças do Presidente Mansour Hadi, com o apoio da coligação internacional liderada pela Arábia Saudita. A guerra civil já fez 3,3 milhões de deslocados e 24 milhões de pessoas – mais de dois terços da população – precisam de ajuda humanitária.

É neste cenário que encontramos o médico moçambicano Jeremias Naiene, ao serviço da Organização Mundial de Saúde. Nasceu na Beira, trabalhou na Direção Provincial de Saúde de Tete, lutou para erradicar a poliomielite em Angola e fez mestrado na Holanda. O currículo já era vasto quando, em 2014, rumou à Libéria, onde deveria ficar seis semanas a trabalhar com a OMS na resposta ao pior surto de ébola da história. Acabou por ficar quatro anos, até bem depois da declaração oficial do fim do surto, em 2016, ajudando a coordenar o sistema de saúde do país até 2018.

A experiência num "cenário caótico" leva-o agora ao Iémen, onde trabalha há dois meses com a OMS. O médico de 38 anos falou com a DW África ao telefone, num dia em que aguardava no Djibouti por autorização para embarcar num voo de volta para Aden. A escalada de violência entre os homens do Conselho de Transição do Sul e as forças do Governo do Iémen levaram ao encerramento do aeroporto internacional da cidade portuária iemenita durante vários dias. A espera, a incerteza e a insegurança são o prato do dia dos trabalhadores humanitários no Iémen. Um dia depois de gravarmos a entrevista, Jeremias Naiene atualizava a DW África através de uma  mensagem: tinha tido finalmente luz verde para voltar ao trabalho.

DW África: Passou quatro anos na Libéria, no combate à maior epidemia do ébola de que há memória. Pode falar-nos dessa experiência?

Jeremias Naeiene na Libéria, em 2014.Foto: privat

Jeremias Naiene (JN): A experiência foi interessante, porque cheguei lá num momento muito complicado do surto, em que a doença praticamente não tinha tratamento, não tinha vacinas...e, mesmo assim, conseguimos fazer um bom trabalho. Contivemos o surto em menos de dois anos. Foi uma experiência bastante interessante. Trabalhava com a OMS, primeiro no campo, depois passei a coordenar uma região inteira composta por cinco condados e, já depois do fim do surto, passei a trabalhar a nível nacional, a coordenar todos os 15 condados do país.

DW África: Um desafio enorme...

JN: É verdade. Um desafio enorme, mas também gratificante porque, em termos pessoais e profissionais, sinto que sou uma pessoa diferente, depois daquele surto. Aquilo é mesmo a aprendizagem na prática, dificilmente se aprende em universidades ou qualquer outro local. Um aprendizado exposto ali ao vírus, aos doentes, com as comunidades que estão a enfrentar o problema, ver como se resolve. E, acima de tudo, dar o contributo pessoal.

DW África: Qual é a melhor memória dessa altura?

JN: A emoção é maior quando passam 21 dias sem casos de ébola num lugar onde estamos a trabalhar. No início, quando chegamos lá, estamos naquele ambiente caótico, em que não se sabe o que é que vai acontecer. A transmissão está ali, de uma forma explosiva. Quando chegamos aos 21 dias sem sintomas e olhamos para trás, quase que não acreditamos que fizemos um trabalho tão espetacular. Naquela altura nem se quer tínhamos vacina nem medicamentos experimentais disponíveis. Erradicámos só com medidas preventivas como lavar as mãos, isolar os casos, seguir quem teve os contactos [pessoas que tiveram contacto com pessoas infectadas], envolver a comunidade, nos funerais e por aí fora. É a melhor recordação que tenho, 21 e depois 42 dias sem qualquer caso e declarámos a doença erradicada.

DW África: O que é que o leva agora ao Iémen?

Jeremias Naiene: Um médico moçambicano no Iémen

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JN: Quando já temos experiência com situações complexas, acabamos por ficar na lista dos especialistas da organização [Mundial de Saúde]. Quando há qualquer outra situação, especialmente quando as pessoas conhecem o trabalho que fizemos em situações difíceis, acabam por nos convidar para apoiar. Foi assim que fui parar ao Iémen, a convite da OMS, para apoiar o país na situação complexa que está a passar neste momento.

DW África: O que é que saltou à vista quando aterrou no país?

JN: A impressão é basicamente o contrário do que vemos na imprensa. Embora seja uma situação complexa, muito perigosa, encontramos a vida ali a decorrer normalmente. Isto, apesar de alguns confrontos armados que acontecem. Acabou por ser um desafio diferente da Libéria, mas acabei lá, a dar o meu contributo ao país.

DW África: Como é o dia-a-dia de um médico nesse cenário de conflito?

JN: Devido à situação, muitas vezes temos uma restrição de movimentos. É preciso saber qual é a situação de segurança antes de passarmos para o terreno. A rotina é prestar apoio técnico e logístico aos médicos locais, em termos de manejo dos casos, por exemplo.

DW África: Entre carências extremas e a violência, quais são os casos mais comuns que os médicos recebem?

JN: Além do traumatismo, claro, devido à violência, existem surtos declarados, de cólera, de dengue...são doenças típicas de países em desenvolvimento, especialmente um país com uma situação sanitária precária.

Rebeldes do Conselho de Transição do Sul, que lutam pela independência do sul do Iémen.Foto: Getty Images/AFP/N. Hasan

DW África: Daquilo que pôde ver nestes dois meses, quais são as maiores dificuldades dos profissionais de saúde no Iémen?

JN: A maior dificuldade é a movimentação. É sair, por exemplo, se há uma situação numa zona remota. Por vezes, as situações estão em zonas onde há um conflito armado muito ativo e temos de esperar até que haja alguma trégua  para podermos chegar lá e prestar assistência às pessoas. Além da própria situação sanitária. Agora há apoio das organizações humanitárias, mas há muita carência.

DW África: Como é que lida com esta questão da insegurança? Não tem medo de trabalhar neste contexto?

JN: O medo desaparece. Há sempre medo antes de ir, mas quando chegamos ao terreno é preciso deixar de ter medo para termos a força necessária para prestar assistência. Claro que a situação agora é diferente do contexto do ébola, o inimigo é silencioso, agora, quando estamos lá [no Iémen] por vezes ouvimos o barulho dos disparos. Mas é preciso confiar no sistema de segurança que temos e prosseguir o nosso trabalho.

DW África: Até quando vai ficar no Iémen?

JN: É muito complicado dizer, neste momento. Tudo vai depender das necessidades do país. Quando fui à Libéria, fui por seis semanas e acabei por ficar quatro anos. Portanto, é imprevisível. Fico o tempo que for necessário.

DW África: Para já não há um fim à vista para o conflito...

JN: Não, não, não...está muito complicado.

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