João Mosca: Cabo Delgado já vive "a maldição dos recursos"
3 de janeiro de 2020
Ataques de insurgentes aterrorizam a província de Cabo Delgado há mais de dois anos. O economista moçambicano João Mosca identifica um interesse não declarado na instabilidade da região; rica em recursos minerais.
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A província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, está a ser assolada por ataques de insurgentes desde outubro de 2017. Em entrevista à DW África, o economista João Mosca lembra que a região não é somente rica em recursos naturais, mas também propícia para o trânsito de traficantes de drogas e contrabandistas de pedras preciosas.
O professor catedrático e diretor do Observatório do Meio Rural considera que o conflito é uma indicação clara da chamada "maldição dos recursos naturais".
João Mosca salienta que dinâmicas sociais, económicas e políticas de territórios ricos em recursos minerais podem levar à instabilidade, mas há inúmeras experiências bem sucedidas que conjugam a exploração desses recursos com desenvolvimento e paz.
João Mosca (JM): Aquela zona é de tráfico de drogas, de madeiras, de pedras preciosas e outros minerais importantes. Pode haver ramificações internas não só de empresários financiadores, mas também de elites políticas e militares associadas ao assunto e interessadas no próprio conflito para a abertura de um corredor que facilite esse tráfico. Existe pouco controlo efetivo, capacidade de fiscalização do Estado sobre a realidade e explorações de gás. Portanto, há um conjunto grandíssimo de questões que fazem que muitos moçambicanos vejam este fenómeno com grande preocupação, sobretudo pensando que o retorno para o país, para aquelas populações que vivem perto dos recursos naturais, é muito pouco ou quase negativo.
DW África: Este cenário não será o início da "maldição dos recursos naturais"?
JM: Já é a maldição dos recursos naturais. Faz parte do processo da maldição dos recursos naturais. A maldição continuará se o conflito continuar, se os recursos para o Estado moçambicano, para o bem-estar da população local e nacional não existirem. Depois o gás acaba e nós ficamos sem recursos, sem dinheiro nem gás. Portanto, há aqui um conjunto de aspetos que indicam que caminhamos, na verdade, para o aprofundamento da maldição dos recursos e não o contrário.
DW África: Como solucionar esse problema nas zonas onde há recursos e há também conflitos?
JM: É preciso eliminar ou reduzir drasticamente as condições que sustentam o conflito internamente, que são basicamente as seguintes: grande pobreza, poucos serviços ao cidadão - educação, saúde e água -, grandes desigualdades sociais em termos de rendimentos económicos, problemas étnicos que não se resolvem facilmente. É preciso ter acesso equitativo aos recursos. A questão do poder local, isto é, a disposição dos postos de responsabilidade do Estado e das empresas localmente.
João Mosca: Cabo Delgado já vive "a maldição dos recursos"
[É preciso] criar oportunidades de novos empregos, de pequenas iniciativas privadas, de empreendedorismo e de formação para as pessoas. É preciso estar junto das populações, fazer com que a população compreenda a raiz da situação e que haja na zona um clima de apaziguamento. Há conflitos de terra muito sérios, interétnicos. A solução puramente militar pode terminar com tiros, mas não faz a reconciliação, não elimina os elementos de conflito que estão presentes no território.
DW África: Nestas circunstâncias, é preferível não explorar os recursos, mas viver em paz, ou explorar e viver nesta situação?
JM: Há muitos países que têm recursos e têm paz, têm o desenvolvimento do qual a maior parte da população beneficia. Há países asiáticos assim, países árabes… Alguns conseguiram converter o petróleo em benefício, para um forte desenvolvimento económico social e urbano, de modernidade. Grande parte dos países árabes [são assim], embora tenham os seus problemas internos também. Esses países, porém, conseguiram transformar os recursos naturais em progresso.
DW África: Mas onde está o problema de Moçambique?
JM: O problema está um pouco na transparência, no tipo de governação e na corrupção. Essas são questões centrais. E depois na capacidade de o Estado ter regulação, saber fazer leis, ter capacidade de fiscalização, monitorização, grande transparência dos fenómenos, grande transparência nos contratos.
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.