Crise em Bissau: "É uma situação de pré-golpe de Estado"
António Cascais
18 de maio de 2022
O Presidente guineense pode dissolver o Parlamento, mas é obrigatório ouvir o Conselho de Estado, lembra constuticionalista. "Provavelmente quer através da revisão constitucional concentrar poderes", diz Jorge Miranda.
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Três dias depois de o Presidente guineense, Umaro Sissoco Embaló, ter dissolvido o Parlamento da Guiné-Bissau e marcado eleições legislativas para 18 de dezembro, aumentam as dúvidas sobre a legalidade das medidas tomadas pelo chefe de Estado.
Será que o Presidente pode dissolver o Parlamento a seu bel-prazer? Ou a dissolução só pode ser feita em determinadas condições? Existe um prazo legal para a convocação de novas eleições ou será que o Presidente pode marcar eleições para oito meses depois, como aconteceu agora? Quem fiscaliza o próprio Presidente da Guiné-Bissau?
A DW África ouviu a opinião do conceituado constitucionalista Jorge Miranda, professor da Universidade Católica de Lisboa e da Universidade de Lisboa, que chegou a ser consultado aquando da elaboração da Constituição da Guiné-Bissau, que é, em muitos pontos, parecida com a Constituição da República Portuguesa.
DW África: O Presidente da Guiné-Bissau tem o direito, de facto, de dissolver a Assembleia Nacional Popular?
Jorge Miranda (JM): O Presidente da República pode dissolver o Parlamento? Realmente pode. O artigo 69, alínea a), pode dissolver o Parlamento.
DW África: E pode dissolver a Assembleia Nacional Popular sempre que quiser, a seu bel prazer, por assim dizer, ou tem de obedecer a regras?
JM: É obrigatório ouvir o Conselho de Estado, segundo o artigo 75, é obrigatório. E, por outro lado, enquanto a Assembleia estiver dissolvida, funciona a Comissão Permanente da Assembleia, diz o artigo 95. Não pode impedir a comissão permanente de funcionar.
DW África: Mas é sabido que há um prazo de 90 dias para a convocação de novas eleições. Por outro lado, o Presidente da República invoca a necessidade de revisão da Constituição, alegando que a Assembleia Nacional Popular se recusou a discutir as suas propostas elaboradas por uma comissão por ele instalada. Isso é legal?
JM: Quem faz a revisão não é o Presidente, é a Assembleia.
"Suspeitos de narcotráfico" por trás da tentativa de golpe
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DW África: O Presidente formou uma comissão com propostas para a revisão constitucional que apresentou à Assembleia Nacional Popular.
JM: O Presidente não tem o poder de apresentar a proposta de revisão constitucional. As propostas de revisão constitucional são apresentadas pelos deputados.
DW África: E a Assembleia Nacional Popular recusou-se a discutir essas propostas do Presidente. Foi aí que o Presidente dissolveu a Assembleia.
JM: No fundo, dissolveu por causa da revisão constitucional, provavelmente porque quer através da revisão constitucional concentrar poderes.
DW África: Quem é que fiscaliza o Presidente da Guiné-Bissau?
JM: Não está prevista. Há fiscalização da constitucionalidade das leis, mas não dos atos do Presidente.
DW África: Como avalia a atuação do Presidente da Guiné-Bissau neste concreto caso?
JM: Isso é uma prática muito conhecida dos ditadores.
DW África: Portanto, na sua opinião, estamos aqui numa situação de muita falta de transparência e até de ilegalidade?
JM: É uma situação de pré-golpe de Estado.
Golpes de Estado em África: Um mal endémico
Em menos de um ano, o continente africano viveu oito golpes e tentativas de golpe de Estado. A maior parte aconteceu na África Ocidental, região do continente mais fértil para as intentonas. Não há fator surpresa.
Foto: Radio Television Guineenne/AP Photo/picture alliance
Níger: Tentativa de golpe fracassada
A tentativa de golpe de Estado aconteceu a 31 de março de 2021, dois dias antes da tomada de posse do Presidente Mohamed Bazoum. Na capital, Niamey, foram detidos alguns membros do Exército por detrás da tentativa. O suposto líder do golpe é um oficial da Força Aérea encarregado da segurança na base aérea de Niamey. O Níger já sofreu 4 golpes de Estado: o último, em 2010, derrubou Mamadou Tandja.
Foto: Bernd von Jutrczenka/dpa/picture alliance
Chade: Uma sucessão com sabor a golpe de Estado
Pouco depois do marechal Idriss Déby ter vencido as presidenciais, morreu em combate contra rebeldes. A 21 de abril de 2021, o seu filho, o general Mahamat Déby, assumiu a liderança do país, sem eleições, nomeando 15 generais para o Conselho Militar de Transição, entre eles familiares seus. Idriss governou o Chade por mais de 30 anos com mão de ferro e o filho dá sinais de lhe seguir os passos.
Foto: Christophe Petit Tesson/REUTERS
Mali: Um golpe entre promessas de eleições
O coronel Assimi Goita foi quem derrubou Bah Ndaw da Presidência do Mali a 24 de maio de 2021. Justifica que assim procedeu porque tentava "sabotar" a transição no país. Mas Goita prometeu eleições para 2022 e falou em "compromisso infalível" das Forças Armadas na defesa da segurança do país. Pouco depois, o Tribunal Constitucional declarou o coronel Presidente da transição.
Foto: Xinhua/imago images
Tunísia: Um golpe de Estado sem recurso a armas
No dia 25 de julho de 2021, Kais Saied demitiu o primeiro ministro, seu rival, Hichem Mechichi, e suspendeu o Parlamento por 30 dias, o que foi considerado golpe de Estado pela oposição, que convocou manifestações em nome da democracia. Saied também levantou a imunidade dos parlamentares e garantiu que as decisões foram tomadas dentro da lei. Nas ruas de Tunes, teve o apoio da população.
Foto: Fethi Belaid/AFP/Getty Images
Guiné-Conacri: Um golpista da confiança do Presidente
O dia 5 de setembro de 2021 começou com tiros em Conacri, uma capital que foi dominada por militares. O Presidente Alpha Condé foi deposto e preso pelo coronel Mamady Doumbouya - que dissolveu a Constituição e as instituições. O golpista traiu Condé, que o tinha em grande estima e confiança. Doumboya tinha demasiado poder e não se entendia com a liderança da ala castrense.
Foto: Radio Television Guineenne via AP/picture alliance
Sudão: Golpe compromete transição governativa
A 25 de outubro de 2021, os golpistas começaram por prender o primeiro ministro, Abdalla Hamdok, e outros altos quadros do Governo para depois fazerem a clássica tomada da principal emissora. No comando estava o general Abdel Fattah al-Burhan, que dissolveu o Conselho Soberano. Desde então, o Sudão vive manifestações violentas, com a polícia a ser acusada de uso excessivo de força.
Foto: Mahmoud Hjaj/AA/picture alliance
Burkina Faso: Golpe de Estado festejado
A turbulência marcou o começo do ano, mas a intentona foi celebrada em grande nas ruas da capital, Ouagadougou. A 23 de janeiro de 2022, o tenente-coronel Paul Damiba liderou o golpe de Estado ao lado do Exército. Ao Presidente Roch Kaboré não restou outra alternativa se não demitir-se. Tal como os golpistas de outros países, comprometem-se a voltar à ordem constitucional após consultas.
Foto: Facebook/Präsidentschaft von Burkina Faso
Guiné-Bissau: Intentona ou "inventona"?
Tiros, alvoroço, mortos e feridos no Palácio do Governo marcaram o dia 1 de fevereiro de 2022 em Bissau. O Presidente Umaro Sissoco Embaló diz que os golpistas queriam matá-lo e ao primeiro ministro, Nuno Nabiam. Houve algumas detenções, mas até hoje não se conhece o líder golpista. No país, acredita-se que tudo não passou de um "teatro" orquestrado pelo próprio Presidente, amplamente contestado.