Defesa do ex-ministro moçambicano das Finanças negou todas as acusações. Manuel Chang é acusado de envolvimento nas "dívidas ocultas", um esquema que terá lesado Moçambique em mais de 2,2 mil milhões de dólares.
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Está na fase final o julgamento de Manuel Chang que decorre desde meados de julho no Tribunal Distrital de Brooklyn, em Nova Iorque, nos EUA.
Em resumo, o ex-ministro das Finanças de Moçambique diz que só fez o que lhe mandaram.
A defesa de Chang argumentou, durante o julgamento nos Estados Unidos, que eram as "altas esferas" governativas em Moçambique que estavam interessadas no negócio das "dívidas ocultas". Um desses governantes seria o então Presidente moçambicano, Armando Guebuza; outro, o atual chefe de Estado, Filipe Nyusi, que na altura (2013-2014) era ministro da Defesa.
Sendo assim, "como o Governo queria", Chang assinou as garantias soberanas que abriram a porta a empréstimos milionários para financiar um suposto projeto de proteção costeira.
"Todos [estes projetos] eram o grande orgulho de Moçambique. O Governo queria fazer isto" para impulsionar o país, sublinhou o advogado Adam Ford, citado pelo portal Global Investigations Review, durante o julgamento no Tribunal para o Distrito Leste de Nova Iorque.
Dívidas ocultas: O crime compensa?
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Segundo Ford, até hoje não há provas de que o ex-ministro tenha recebido um cêntimo em subornos.
Já a procuradoria norte-americana diz que Chang (também identificado no caso como "Pantero" ou "Chopstick") sabia bem o que estava a fazer. De acordo com a acusação, o ex-ministro não assinou só as garantias dos empréstimos, ocultados ao Parlamento moçambicano; também terá recebido 7 milhões de dólares da empresa de construção naval Privinvest para viabilizar o negócio.
A Privinvest terá designado o pagamento como "despesas de consultoria", segundo o despacho de acusação.
Esse montante, entretanto, terá sido devolvido e está "sob a guarda" do Estado moçambicano, revelou a Procuradoria-Geral da República de Moçambique no final de julho.
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Fraude eletrónica e lavagem de dinheiro
Manuel Chang está detido nos Estados Unidos há mais de um ano, depois de ter sido extraditado da África do Sul. A pedido explícito da defesa, o antigo ministro foi ordenado a aparecer no tribunal em Nova Iorque apenas com roupas civis: fatos, camisas, gravatas, cinto, sapatos de couro, meias. Consta tudo de uma lista homologada pelo tribunal com instruções para o centro de detenção.
As acusações contra Manuel Chang nos EUA resumem-se a dois pontos: conspiração para cometer fraude eletrónica, tendo o ex-ministro alegadamente co-arquitetado um "esquema" para enganar investidores, e conspiração para lavar dinheiro. Transferências milionárias da Privinvest com origem nos Emirados Árabes Unidos, destinadas a Chang, teriam passado por Nova Iorque a caminho de Espanha.
É por isso que a procuradoria norte-americana tomou o caso em mãos. E também porque investidores nos EUA teriam sido lesados.
Dívidas ocultas: "O maior condenado é o povo moçambicano"
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O caso contra Boustani em 2019
Mas no julgamento de 2019 contra Jean Boustani, negociador da Privinvest e figura-chave no escândalo das dívidas ocultas, o júri inocentou Boustani.
Porquê? A defesa de Boustani sustentou, desde o início, a inocência do negociador libanês. As transferências feitas pela Privinvest não seriam subornos, mas comissões de incentivo ou 'lobbying'. Tudo o que Boustani fez seria em nome do bem maior de Moçambique.
Outras questões terão pesado no veredito do júri. No entender de Borges Nhamire, do Centro de Integridade Pública (CIP) de Moçambique, que acompanhou o caso em Nova Iorque, "há entendimento […] de que os membros do júri - que são cidadãos ordinários residentes em Brooklyn - não entenderam a complexidade do caso".
Alguns jurados terão concluído também que "não havia qualquer relação" entre as ações de Boustani e os EUA, escreveu a DLA Piper, um escritório de advocacia norte-americano que publicou, em 2019, um artigo sobre o processo. O próprio arguido Jean Boustani disse que, até ser detido, nunca tinha estado nos EUA.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)