O julgamento do caso das dívidas ocultas tornou-se numa espécie de novela real em Moçambique, que paralisa meio mundo diante dos meios de comunicação. "Quem não assiste não sabe o que perde", diz-se já em Quelimane.
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Começou há mais de uma semana o julgamento das chamadas dívidas não declaradas em Moçambique. Em causa estão mais de dois mil milhões de dólares de empréstimos sem a autorização do Parlamento. O processo é o tema do momento nas esquinas, barracas e mercados e em muitos outros locais públicos de Quelimane, na província da Zambézia.
Até agora, a maioria da população da cidade está muito satisfeita com o decorrer do julgamento. "O processo está a decorrer normalmente para Moçambique. É uma nova era para nós, outrora não era comum julgar esse tipo de [casos], julgar entidades, figuras muito fortes", diz um morador.
"Desde que começaram as audiências, é preciso dizer que estão sendo bem conduzidas. O juiz está sendo cauteloso, pelo menos consegue ser um bom ouvinte. Ele deixa que os arguidos falem o que sabem, até mesmo mentir", considera Rogério Waru Waru, membro do Movimento Democrático de Moçambique (MDM).
Waru Waru não vê "nenhum problema", apenas "uma boa condução" do julgamento. "Se isso continuar assim, vamos dizer que a justiça será aplicada, apesar de ontem ter havido um pouco arrogância pela parte do réu, filho do ex-Presidente, mas o juiz foi muito ponderante", lembra.
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"Está em julgamento o Estado e a FRELIMO"
O analista político Ricardo Raboco considera imperdíveis as sessões do julgamento das dívidas ocultas de Moçambique. "Perde quem não assiste, não aprende quem não quer. Está em julgamento o Estado e o partido que governa o Estado [a FRELIMO] desde a independência nacional", afirma.
Por via disso, acrescenta, "tem alimentado um conjunto de expetativas que vão no sentido de: será desta que esta promiscuidade entre elites políticas ligada ao partido e que usa o Estado para prosseguir fins próprios serão disciplinadas? Entretanto, não vamos cantar vitórias vamos esperar para ver."
Manuel de Araújo, edil de Quelimane, não vê com bons olhos o julgamento destas dívidas contraídas com garantias do Estado moçambicano. "Pessoalmente, não tenho muitas esperanças porque o nosso judiciário ainda não é independente do Executivo", diz.
Araújo aponta ainda vários exemplos em que vários processos acabaram por ser "transformados em processos políticos" e não em processos judiciais como devia ser. "Numa situação em que o poder judicial ainda não é dependente, penso que é um desafio que queremos lançar para uma luta no sentido de libertarmos o nosso judiciário que está amarrado e acorrentado ao Executivo", conclui.
Julgamento das dívidas Ocultas: "Outras coisas..."
O julgamento do caso das dívidas ocultas revela aos poucos mais informações sobre o que muitos consideram o maior escândalo de corrupção de Moçambique. Conheça as peculiaridades do caso e dos seus personagens.
Foto: Fotolia/Carlson
O caso
O escândalo das dívidas ocultas veio ao de cima entre 2013 e 2014. É a maior fraude financeira de Moçambique e prejudicou a nação e a imagem do país. Em causa estão cerca de 2 mil milhões de euros. O esquema tem como "cabeças" altos funcionários do Estado e trabalhadores de bancos como o Credit Suisse. O julgamento começou a 23 de agosto e conta com 19 arguidos, 70 testemunhas e 69 declarantes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Julgamento nas instalações de uma cadeia
A falta de capacidade para albergar muita gente terá levado o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo a optar pelo Estabelecimento Penitenciário Especial de Máxima Segurança da Machava para o julgamento. E é na B.O., como é conhecida a cadeia, onde estão detidos a maioria dos envolvidos no caso. Alguns dos julgamentos mais mediatizados do país costumam acontecer aqui.
Foto: Romeu da Silva/DW
Juiz da causa é de índole duvidosa?
Efigénio Baptista não tem percurso profissional imaculado, foi julgado e condenado duas vezes por ameaças e ofensas corporais num caso de abuso de poder em Manica. Também terá sido alvo de contestação popular em Sofala, que culminou com a queima da sua casa. Alguns setores questionam a escolha do juiz, defendem que deveria ter sido escolhido um juiz sénior para o caso. O "juiz júnior" tem 42 anos.
Foto: Romeu da Silva/DW
"Alérgico a corrupção" e sujeito a pressão
Sobre as condenações, o juiz Efigénio Baptista, numa entrevista ao "O País" esclareceu: "Mas eu recorri da decisão e o Tribunal de Recurso da Beira anulou-a. Por isso, eu não tenho cadastro criminal". Baptista terá estado ainda sob pressão por ser o juiz do caso mais "cabeludo" do momento. A imprensa moçambicana chegou a noticiar sobre possíveis ameaças ao juiz.
Foto: Romeu da Silva/DW
Ordem dos Advogados em representação do povo
A Ordem dos Advoagados de Moçambique (AOM) intervém no julgamento na qualidade de assistente e pretende auxiliar o Ministério Público. O objetivo é assegurar que o povo moçambicano seja informado, atualizado e esclarecido sobre os contornos do processo. São sete representantes, entre eles os ex-bastonários Gilberto Correia e Flávio Menete.
Foto: Romeu da Silva/DW
Bendita seja a mulher entre os homens...
Ana Sheila Marrengula é representante do Ministério Público no julgamento. É a única mulher entre o jurado, o que desencadeou queixas de falta de inclusão. É apreciada pelas suas questões consideradas pertinentes, mas igualmente criticada pelos seus modos pouco profissionais de questionar os réus. Pede indemnização civil ao Estado de cerca de três mil milhões de dólares acrescidos de juros.
Foto: Christoph Hardt/picture-alliance/Geisler-Fotopress
O uniforme da discórdia
No primeiro dia do julgamento os réus não se apresentaram de uniforme prisional, como é prática no país e conforme solicitação do juiz. A defesa contestou a exigência, alegando que a lei não obriga a isso, mas no final valeu a ordem de Efigénio Baptista que defende "tratamento igual" entre os presos. Na terça-feira (24.08) a cor laranja dominava a sala de audiências na B.O.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alexandre Chivale, um advogado (in)suspeito?
Advogado da família Guebuza é a "sensação" entre os causídicos. Para além da sua postura destemida, e até entendida como de afronta, Chivale marcou o primeiro dia do julgamento. É que é administrador da Txopela, empresa suspeita do seu constituinte, Carlos do Rosário. E mais: ocupa uma das casas supostamente adquiridas com o dinheiro do calote. Tribunal deu-lhe 72 horas para deixar o imóvel.
Foto: privat
A memória curta de Cipriano Mutota
Foi a estreia do banco dos réus. Mutota revela que foi traído pelos seus parceiros do negócio na partilha dos "lucros" e não ficou contente. E não se lembra do destino dado a cerca de 656 milhões de euros que terá recebido como "luvas". O ex-diretor do Gabinete de Estudos da secreta praticamente confirmou a acusação do Ministério Público. Diz que Nyusi e Guebuza aprovaram o projeto.
Foto: Romeu da Silva/DW
Manuel Chang regressa no momento "H"
Justamente no dia do arranque do julgamento, a África do Sul anunciou a tão esperada extradição de uma das peças chave do crime, Manuel Chang. O juiz decidiu que o ex-ministro das Finanças será ouvido "na qualidade de declarante, quando estiver no território nacional", em resposta ao pedido da Ordem dos Advogados de Moçambique e reafirmado pelo Ministério Público e pelos advogados dos 19 arguidos.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
O "massagista" do sistema
Foi o lobista do negócio entre o Estado e a Privinvest, identifica-se como facilitador. Num dos emails trocado com a Privinvest mencionou uma "massagem ao sistema", mas no julgamento negou. Recebeu de Jean Boustani cerca de 8,5 milhões de dólares e recusa-se a devolver o valor, alegando que é resultante do seu trabalho. É visto como astuto, embora se tenha destacado por contradições no tribunal.
Foto: Romeu da Silva/DW
A amnésia da "cinderela"
É o terceiro réu a sentar-se no banco. Ndambi é filho do ex-Presidente Armando Guebuza é foi apelidado de cinderela pelos seus parceiros de negócios por ser lento a agir. Terá recebido 33 milhões de dólares de luvas de Jean Boustani, negociador da Privinvest. Não se recorda de quase nada que é questionado pelo juiz, diz que não tem memória de elefante. Foi um dos pivôs no tráfico de influência.